Tuesday, 24 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Lilian Perosa: ‘Questão mal resolvida da história brasileira’

A divulgação das supostas fotos de Vladimir Herzog pelo jornal Correio Braziliense, em outubro, trouxe à tona um capítulo obscuro da história brasileira. A morte do jornalista nos porões da ditadura militar, há 29 anos, e a controvérsia sobre sua verdadeira causa nunca foi esquecida pela memória do país, mas parecia estar adormecida na lembrança de parte da população brasileira.

O polêmico episódio do suposto suicídio do então diretor de jornalismo da TV Cultura, em São Paulo, nunca foi plenamente esclarecido. A volta do Caso Herzog à mídia nacional reabriu feridas e questionamentos. Resgatou também a curiosidade sobre um período de injustiças e privação de liberdades.

O livro Cidadania Proibida: O Caso Herzog através da Imprensa, de Lilian Perosa, ajuda a saciar essa curiosidade. Originalmente uma tese de doutorado da jornalista na Escola de Comunicações e Artes da USP, o livro, lançado em 2001, analisa a cobertura do caso feita por quatro jornais de São Paulo – desde a morte de Herzog até a divulgação do relatório final do inquérito policial-militar.

Em entrevista ao Observatório, Lilian joga novas luzes sobre os ‘anos de chumbo’ brasileiros. Ela explica as razões que a levaram a estudar o tema e contextualiza a atuação de alguns dos principais veículos de comunicação do país durante o regime militar.

***

Por que você escolheu esse tema para sua tese de doutorado?

Lilian Perosa – Considero o Caso Herzog um emblema de uma questão mal resolvida da história brasileira. Foi um episódio que marcou profundamente a minha adolescência. Acabava de completar 17 anos e freqüentava o curso médio da Escola Técnica Federal do Amazonas, instituição cujo perfil associava rigor no ensino e um alto grau de conservadorismo político. Os professores não se manifestavam politicamente, exceto aqueles responsáveis pelas disciplinas de OSPB (Organização Social Política Brasileira) e Educação Moral e Cívica, cuja função se restringia a exaltações do regime militar e de seus representantes. Tampouco observava-se da maioria dos alunos qualquer interesse por temas políticos, com exceção de um pequeno grupo do qual acabei me aproximando em 1974. Por meio dele me inteirei de assuntos da política nacional e internacional que, apesar da abertura – eu não tinha noção do que isso significava – eram tratados com cautela, em voz baixa e sempre olhando-se no entorno. Foi nesta época que conheci algumas edições de jornais da chamada imprensa alternativa, dentre os quais O Pasquim, pelo qual passei a nutrir um afeto especial. Foi no Pasquim que tomei conhecimento da morte de Vladimir Herzog.

Continuei interessada no regime militar quando cursava a faculdade de jornalismo, em 1978, inclusive como militante estudantil, envolvida no movimento pela anistia e, posteriormente, nas Diretas Já. Em 1992, iniciando o doutorado na ECA-USP, resolvi enfrentar o trauma de adolescência, agora também tomado como fator de identidade profissional. Achava que o Caso Herzog me permitiria resolver não somente algumas pendências históricas, mas, sobretudo, questões internas à categoria jornalística e aos órgãos de imprensa, que tanto me incomodavam àquela altura.

Como foi feita a pesquisa?

L.P. – Como fonte primária, trabalhei com um universo de jornais representativos da chamada grande imprensa paulista, na época não submetidos à censura e com reconhecido impacto na opinião das classes média e alta e dos centros de poder: O Estado de S. Paulo, Jornal da Tarde, Folha de S. Paulo e Folha da Tarde. Parte desses jornais exercem influência no restante da imprensa regional, pela distribuição de matérias por meio de agências de notícias, pela venda dos direitos de reprodução dos seus artigos e por sua própria notabilidade. Junto a outros grandes jornais do Rio de Janeiro, eles acabam dando a tônica do jornalismo brasileiro.

Foram pesquisados pouco mais de 400 textos a partir da morte de Herzog, em 25 de outubro de 1975, até a divulgação do inquérito policial militar, em 20 de dezembro daquele ano. Quando se fez necessário, recorri a edições anteriores e posteriores a esse período como apoio importante para solucionar ou ilustrar questões. Além de confrontados entre si, os textos dos jornais foram submetidos a um vasto testemunho bibliográfico de estudiosos do regime militar.

É um estudo sobre memória histórica – um fator essencial do que se costuma chamar de identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje. A memória coletiva é a razão da luta pela dominação da tradição, e os silêncios da história revelam os mecanismos para manipulá-la. A cobertura do Caso Herzog pelos jornais, embora aparentemente ruidosa para a conjuntura política da época, operou silêncios que, somente após a anistia, puderam vir à tona. Para resolver esses silêncios, busquei primeiramente examinar a situação da imprensa no cenário da abertura como pré-requisito para o entendimento de sua ação acerca do acontecimento. Depois, entrei propriamente no núcleo da tese: a cobertura do Caso Herzog pelos jornais, dividida em três temas paradigmáticos: a morte, o ato ecumênico e a divulgação do inquérito policial-militar.

Qual a importância da imprensa da época na avaliação do significado da morte de Vladimir Herzog?

L.P. – O caso precisa ser avaliado dentro do seu contexto: vivíamos o processo de abertura ‘lenta, gradual e segura’, proposta pelos generais Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva para tentar administrar o fim do milagre brasileiro. O modelo de desenvolvimento concentrador de renda colhia os resultados que cultivara sob a proteção do regime militar: inchaço nas regiões metropolitanas com um êxodo rural sem precedentes; más condições de transporte e moradia; e a proliferação de favelas e epidemias como a poliomielite e a meningite, que vitimaram milhares de crianças. Além disso, havia um mal-estar de setores da elite em relação à atuação dos órgãos de repressão, recrudescida com o AI-5.

A facção pró-abertura considerava que a melhor saída era socializar as responsabilidades. Isso implicaria gerenciar medidas que não melindrassem os militares – alguns já visivelmente desconfiados do projeto de liberalização – e que pudessem ao mesmo tempo cooptar a oposição de elite, com reivindicações cada vez mais crescentes. Mas a facção dos ‘duros’, que representava os órgãos de repressão, tornara-se uma pedra no sapato da facção pró-abertura, e desde a posse de Geisel deu demonstrações de seu controle sobre o aparato repressivo, realizando intensas buscas e apreensões em todo o país e se valendo da tortura como método de controle político. O abrandamento da censura que se segue à posse de Geisel será, portanto, uma operação tática e estratégica no sentido de intimidar a linha-dura, mas não tanto que a assustasse e a levasse a reações incontroláveis.

O Caso Herzog explode nesse contexto de luta entre facções pelo poder, e sua cobertura pela imprensa vai refletir a divisão de apoios que os jornais vão dar a um ou outro grupo. Assim, O Estado de S. Paulo e Jornal da Tarde imprimem maior densidade aos seus relatos, fazendo uma análise mais extensa e detalhada. Por meio de seus editoriais, esses dois jornais aliam-se a outros porta-vozes da sociedade civil como a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), a ABI (Associação Brasileira de Imprensa), o Sindicato dos Jornalistas de São Paulo e parlamentares do então MDB (Movimento Democrático Brasileiro) para descriminalizar a figura de Herzog – transformado em culpado pelo sistema de repressão – e para defender a política de retomada do Estado de Direito.

Já as Folhas dividem seu apoio entre um e outro grupo, cercando-se das seguranças necessárias para se autopreservar. Enquanto a Folha de S. Paulo, ainda que vacilante, tenta imprimir um tom liberal, sobretudo por meio de seus articulistas mais críticos das ações repressivas, a Folha da Tarde colocou sua restrita produção informativa a serviço dos órgãos de repressão. Para os primeiros, Herzog encarnava o paradigma do cidadão brasileiro vítima do arbítrio dos órgãos de segurança. Para os outros, reduziu-se ao suicida – respeitável ou não – delatado por seus ‘colegas comunistas’.

O ponto alto do Caso Herzog foi o ato ecumênico em sua memória, realizado na Catedral da Sé, em São Paulo, em 31 de outubro. O ato foi uma lição de serenidade, bem diferente do que esperava a linha-dura, que estava em prontidão para reagir e retomar seu prestígio. Mas, no fim, o beneficiado foi Geisel, para quem o episódio já cumprira sua função, não sendo necessário ir mais adiante. O resultado do inquérito policial-militar, confirmando o suicídio, irá demarcar os limites do Caso Herzog: o silêncio sobre as reais circunstâncias da morte do jornalista, acatado pelos jornais.

Com o caso reaberto, qual deve ser o papel da imprensa hoje?

L.P. – Eu prefiro trabalhar com a noção de ‘papéis’ exercidos pela imprensa sob certas circunstâncias. Observo, no meu livro, que os jornalistas operam os acontecimentos de seu tempo sob certas condições políticas, econômicas e sócio-culturais que influenciam sua produção jornalística. Sua esfera de trabalho, o jornal – órgão de imprensa geralmente movido por uma lógica empresarial e que está continuamente defendendo posições mediante a venda de informações – é um condicionante de sua atividade. Isso implica reconhecer no trabalho dos jornalistas não apenas uma operação técnica, mas uma operação simbólica condicionada por ideologias, interesses e valores, no interior de uma dada circunstância histórica. Se considerarmos que optamos em viver num ambiente democrático e ancorados nos direitos de cidadania, precisamos fazer valer esses valores como poder ético e, sobretudo, como meio inegociável de instrumentalizar uma política que esteja a serviço das grandes necessidades da maioria da população e não da tirania de grupos de poder.

O Caso Herzog ressurgiu por causa da publicação de supostas fotos do jornalista enquanto estava preso. Independente de ter-se descoberto posteriormente que as fotos não eram de Herzog, você achou correta sua divulgação na imprensa?

L.P. – A memória oficial continua porosa demais para o esquecimento. Independente do embaraço das fotos, Herzog retorna como símbolo de uma época sombria onde divergir do poder político resultava em prisão, tortura e morte. Ressurge para lembrar que existe um recalque na história brasileira a ser enfrentado, sem o qual toda reparação será provisória. Em algum lugar da nossa democracia esconde-se a caixa-preta dos crimes da repressão, supostamente silenciada pela anistia. Este é um terrível equívoco de entendimento, pois, se o acordo político de lideranças oposicionistas com os militares – sem cuja cooperação, acreditavam, não poderiam avançar rumo a um regime aberto – conseguiu impedir a punição dos planejadores e operadores do arbítrio, o mesmo não pode ser aplicado à memória. E não se trata apenas daquele ditado que diz que ‘quem não aprende com os erros da história está condenado a repeti-los’, mas de conhecermos a fundo a nossa identidade coletiva e assim fortalecer aquilo que conquistamos e acreditamos como o melhor ambiente para nós e para nossos filhos: uma sociedade genuinamente democrática. É dever da imprensa ajudar a resolver esses silêncios.

Qual sua opinião sobre a reabertura do Caso Herzog?

L.P. – Considero que, do ponto de vista da justiça civil, acionada corajosamente por Clarice Herzog à época, e da legitimidade pública que adquiriu ao longo do tempo, o Caso Herzog conseguiu desmascarar os órgãos de repressão do regime militar. Hoje, quero crer que não paira qualquer dúvida sobre a farsa montada pelo inquérito policial-militar e sobre seu assassinato, após terríveis torturas, nas dependências do DOI-Codi do II Exército, em São Paulo.

Mas existem outros inúmeros casos de mortos e desaparecidos cujos familiares querem restabelecer a verdade sobre suas memórias, ou reaver seus restos, ou simplesmente obter o reconhecimento legal de sua morte. A Lei dos Desaparecidos e o sistema de indenizações são apenas uma parte do reparo legal dos crimes da ditadura militar. A reabertura desses arquivos, portanto, não representa revanches, mas um dever de memória para com o país e, sobretudo, para com as novas gerações, que pouco ou nada sabem sobre esses ‘anos de chumbo’.