Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Lobato e o dualismo amigo-inimigo

‘Quem não conhece outro inimigo além da morte e em seu inimigo não avista nada além de vã mecânica, está mais próximo da morte do que da vida, e a cômoda antítese entre orgânico e mecânico é, em si mesma, algo rudimentarmente mecânico. Um agrupamento que vê no seu próprio lado tão-somente espírito e vida e no outro lado apenas morte e mecânica não representa nada além de uma renúncia à luta, tendo somente o valor de um lamento romântico, pois a vida não luta contra a morte, nem o espírito contra a insipidez’.

Nesta passagem, o professor de Direito Constitucional Carl Schmitt (1888-1985), em seu O conceito do político – teoria do partisan – tradução de Geraldo de Carvalho. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p. 102, procura justificar a ideia da identificação de um inimigo como o principal fator de coesão de qualquer grupo social. Como os leigos em Direito, em regra, desconheceriam o indivíduo de quem estou a falar, para dar início a estas considerações transcreveria um esclarecimento posto pelo professor Muniz Sodré: ‘o passado nazista de Carl Schmitt não impede que sua obra hoje possa ser academicamente avaliada como uma das mais importantes da ciência política contemporânea’ (ver aqui).

Identificado o inimigo, merece ser exorcizado

Por que abro o presente texto citando precisamente um trabalho publicado em 1932 – ao tempo, pois, em que Schmitt estava ligado aos construtores do III Reich –, falando do inimigo enquanto fator de unidade dos grupos sociais? Porque parece que a esta condição resolveu reduzir Monteiro Lobato o mestre em Direito pela Universidade Federal Fluminense Carlos Alberto de Medeiros, inquinando-o, praticamente, de protonazi:

‘A posição de Ziraldo foi rebatida numa carta aberta a ele dirigida pela escritora Ana Maria Gonçalves em que esta apresenta uma série de manifestações racistas do próprio Lobato, algumas delas surpreendentes, mesmo para os padrões da época em que foram escritas, como o lamento pela ausência de uma Ku-Klux-Klan em nosso país. Mostra-nos ela que Lobato era um militante da eugenia, pseudociência associada às raízes do nazismo que, segundo ele, deveria ser difundida sutilmente pela escrita. As expressões racistas de Lobato foram bloqueadas pela grande imprensa no afã antiético de manipular a opinião dos leitores, só vindo à tona graças ao jornalista Arnaldo Bloch, que publicou algumas delas em sua página `Logo´, do jornal O Globo. Os defensores ardorosos de Lobato, contudo, ou assumiram a postura do avestruz, negando-se a considerar aquilo que o próprio Lobato pensava sobre o tema de raça, ou procuraram – procuram – justificá-lo pelo contexto histórico. Não deixa de ser irônico que essas pessoas, de modo geral, se alinhem entre os fãs de Gilberto Freyre, defensor supremo da mestiçagem, enquanto Lobato a considerava um obstáculo quase inexpugnável ao progresso da sociedade brasileira. Um belo exercício do duplipensar orwelliano…’ (ver aqui).

Os adversários de Lobato não estão tendo negado o direito de falar. Se o tivessem, não estaria sendo materializado, presentemente, o contraditório em termos respeitosos, como o presente texto pretende fazer. O problema, aqui, é outro: é que a força das convicções e a combatividade militante, por vezes, vêm a ser governadas pela lógica segundo a qual, identificado o inimigo, temos o representante do Demônio, merecedor de ser exorcizado.

Branqueamento progressivo

O suposto caráter escravocrata da obra de Lobato foi discutido – com transcrições da Geografia de D. Bentaem texto que publiquei no nº 632 deste Observatório da Imprensa, e creio não ser necessário repetir aqui o que foi lá dito. O máximo que posso dizer, no presente texto, é que a transcrição talvez nos coloque para refletir um pouco mais sobre as reais contradições que podem comparecer ao longo de uma vida de sessenta e seis anos, antes de dispararmos, com a facilidade da lógica binária, na busca da qualificação de toda a sua obra – inclusive infantil – como voltada à propaganda das ideologias racistas do início do século 20, quando não é na obra infantil que está tal intuito propagandístico.

Quanto à acusação de simpatias pelo nazismo, transcrevi, no número 633 do Observatório da Imprensa, passagens d´A chave do tamanho, escrita em 1942, época em que o Estado Novo ainda se inclinava mais para o Eixo (ver aqui). O texto, por sinal, mereceu do jornalista Sérgio Léo – defensor do Parecer do Conselho Nacional da Educação, não homologado pelo ministro – o seguinte comentário:

‘Também não acho que a coleção do Sítio do Picapau Amarelo é uma insidiosa maneira de fazer campanha eugenista. Lobato tinha ideias muito reacionárias quando moço, que foram temperadas com a experiência e a leitura, como se vê na revisão que fez sobre a `indolência´ do Jeca Tatu. Acho que, no debate para apontar a real existência de terríveis passagens racistas nos textos da obra infantil de Lobato, pessoas admiráveis como o Muniz ou a Ana Maria Gonçalves exageraram, tomaram como projeto as cartas de Lobato e como execução os livros sobre Dona Benta, netinhos e cia. Você encontraria alguns argumentos para sua tese no Geografia de Dona Benta, em que ela deplora o que os europeus fizeram com a África e condena a escravidão. Mas esse humanista Lobato mantinha a convicção de que o melhor para o país seria um progressivo branqueamento, e que negro e beleza são coisas incompatíveis, como se vê em incontáveis trechos dos livros do Sítio.’

Primeiro tradutor de 1984

O que significa isto? Significa que reduzir, por conta de ter Lobato convicções racistas, a sua obra a uma propaganda de tais ideais, valeria por reduzir a obra de Graciliano Ramos, por ser comunista, a uma propaganda do bolchevismo, a de José de Alencar, por ser escravagista, a uma defesa da escravatura e, neste caso, passaríamos uma esponja – ‘apagaríamos da fotografia’, como Stalin fez com Trotsky, para negar o seu importante papel na Revolução de 1917 – nos clássicos brasileiros. Quer dizer: o simples fato de alguém ter uma determinada convicção não é suficiente para converter todos os seus atos em concretização dos ideais de tal convicção. É bom lembrar que, mesmo durante o regime castrense que tivemos no Brasil de 1964 a 1985, embora o Judiciário estivesse emasculado pelos artigos 10 e 11 do Ato Institucional nº 5, de 1968, e os integrantes das Cortes Superiores fossem recrutados entre os apoiadores do movimento das Forças Armadas, quando o máximo que se pudesse dizer acerca do indivíduo preso fosse a sua convicção ‘subversiva’, as decisões condenatórias proferidas pela Justiça Militar eram reformadas. Tal não ocorria, contudo, quando se viesse a qualificar a divulgação das ideias tidas como ‘subversivas’ – neste caso, a condenação era mantida, muitas vezes com adjetivações absolutamente desnecessárias. Quer dizer: mesmo num contexto de máximo autoritarismo, os julgadores sabiam que não se poderia punir alguém por ‘ser’, mas sim, por ‘fazer’.

Claro que alguém dirá, numa outra vertente de argumentação, que os autores a que me estou referindo não escreveram tendo em vista o público infanto-juvenil – e é verdade, porque o pioneiro da literatura destinada a este público no Brasil foi Lobato. Mas o que dizer de obras igualmente destinadas a este público, como o Robinson Crusoe, de Daniel Defoe, no qual o selvagem Sexta-Feira se vem a converter, por gratidão ao personagem-título por lhe haver salvo a vida, em escravo? Ou As aventuras de Tom Sawyer, de Mark Twain, em que o mestiço Injun Joe é um assassino vil e frio, contrastando com simpáticos personagens brancos, como Tom, Huck e mesmo o injustamente acusado Muff? N´O livro da selva, de Kipling, a história de Mowgli não contém o elemento propagandístico do colonialismo britânico, mas as da Foca Branca, de Toomai dos Elefantes e outras que integram o mesmo volume apontam para a superioridade do homem branco ante os nativos da Índia. Em Kim, o colonialismo de Kipling é ainda mais explícito, olhos postos no pequeno e esperto sahib acompanhando um lama ensandecido e convertido em agente do exército britânico. Claro que me recordarão que todos estes livros foram traduzidos por Lobato. Mas encontraram, depois dele, outros tradutores. Se o fato de Lobato os haver traduzido pode ser considerado execução do projeto eugenista – o que, a meu ver, não tem qualquer procedência –, os demais tradutores terão, necessariamente, de sofrer o mesmo juízo, porque não há nenhum diferencial objetivamente passível de consideração para se dar um tratamento ao caso de Lobato e ao caso dos demais. E Orwell, citado pelo articulista em seu prol, teve como primeiro tradutor de 1984 precisamente Monteiro Lobato, aos tempos em que Globo era o nome de uma editora e livraria em Porto Alegre, e não de uma poderosa cadeia jornalística e radiodifusora. Foi, por sinal, uma das suas últimas traduções e a primeira da obra de Orwell que li, há uns bons trinta anos.

Agilidade igual à de um macaco

Rastreando toda a minha coleção de Lobato, não encontrei em nenhuma parte, nem mesmo na boca da Emília, a expressão ‘negra suja’, para se referir à Tia Nastácia. ‘Pretura’, ‘negra beiçuda’, ‘macaca de carvão’, com efeito, mas não ‘negra suja’. Muito menos na obra referida pelo articulista: ‘Em novembro último, um parecer do Conselho Nacional de Educação recomendou que, para ser adquirida pelo MEC (com dinheiro público, portanto), distribuída a escolas públicas e apresentada em sala de aula, a obra Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato, deveria ser `contextualizada´, já que apresentava uma série de expressões racistas dirigidas à personagem Tia Nastácia (`negra suja´, `negra beiçuda´, `macaca de carvão´) pela simpática boneca Emília’. Talvez o entusiasmo em identificar o inimigo o tenha feito localizar uma expressão injuriosa além das que realmente constam da obra referida.

A simpática boneca – personagem de ficção, sempre bom lembrar –, no mesmo Caçadas de Pedrinho, recebe alguns adjetivos, como desrespeitosa com qualquer pessoa que é (estou me referindo à edição de 1960, publicada pela Brasiliense, no mesmo volume que Hans Staden): ‘a terrível bonequinha’ (p. 8, 27), ‘ciganinha’ (p. 66 – será que os ciganos se sentiram ofendidos pela sua associação com o oportunismo?), ‘diabinha’ (p. 103), ‘pernóstica’ (p. 111). Há passagens em que Emília resolve tirar partido da situação de desespero, do ataque do conjunto de feras (p. 58). Noutra, ofende um alemão – branco, louro, exatamente o padrão ideal dos eugenistas –, que se diz proprietário do rinoceronte que chega ao Sítio, chamando-o, primeiro, ‘cara-de-cavalo-melado’ (p. 112) e, mais adiante, ‘cara melada’ (p. 114). Emília é desrespeitosa com todos os demais personagens, com o que os insultos provenientes dela não contam para a caracterização da obra, e é no momento em que Lobato assume o discurso do narrador que devemos centrar nosso foco.

O trecho da ‘macaca de carvão’ (p. 55) – no qual Lobato assume a voz do narrador – comporta mais de uma leitura: 1) a equiparação do negro a um macaco (e nesta, efetiva e explícita conotação racista); 2) a referência à agilidade que o medo dá, a ponto de a iminência do perigo conduzir à prática de atos verdadeiramente impensáveis. Como em relação à primeira leitura já existe desenvolvimento, vamos à segunda. Uma senhora idosa – sofrendo de reumatismos que, como todos sabemos, representam uma limitação à capacidade motora das pessoas que deles são acometidas – obesa – como costumam ser as cozinheiras, sejam brancas, negras, amarelas ou de qualquer outra cor (raríssimas, aliás, dentre as que conheço as que não engordam) –, vendo-se em meio a um ataque em massa liderado por uma onça-macho (uma única onça é suficiente para assustar um indivíduo forte, jovem, sadio; imagine-se então um bando de feras enfurecidas chegando ao mesmo tempo diante de uma senhora idosa, obesa, reumática), com as asas que o medo oferta, de repente, subindo com a agilidade igual à de um macaco por uma estaca vertical. Por sinal, Lobato, assumindo a voz do narrador, dá a dica:

‘Isso de preferir que as onças nos comam vivos é conversa. Na hora em que onça aparece, até em pau-de-sebo um aleijado é capaz de subir. A pobre da tia Nastácia iria ficar sabendo disso no dia seguinte…’ (p. 45).

As virtudes de Lima Barreto

Outra que vem a esquecer dos seus reumatismos – antes do ataque das onças – é D. Benta. E a sua subida nas pernas de pau para fugir às feras, sem o desespero da Tia Nastácia (porque na véspera do ataque), não deixa de ser pontuada de alguma comicidade:

‘Não havia escolha possível e, apesar dos seus sessenta anos e dos seus vários reumatismos, a pobre Dona Benta teve de trepar na escada e ajeitar-se sobre o par de andaimes que Pedrinho lhe destinara.

Custou! Além de ter os músculos emperrados, a boa velhinha era medrosíssima. Por várias vezes quis desistir, e só não desistiu porque os meninos não cessavam de lembrar que nesse caso seria fatalmente devorada, como a avó da menina da Capinha Vermelha. Afinal, aprendeu o equilíbrio, dando uns passos muito desajeitados pelo terreno’ (p. 44).

É uma questão de enfoque. Os adultos com grau mediano de instrução têm de estar também preparados para trabalhar com um conceito que se faz presente tanto no universo dos bacharéis como no dos jornalistas e linguistas, que é o da polissemia. Pedrinho, outrossim, refere-se a Narizinho, Emília, o Visconde e Rabicó – os partícipes da caçada à onça – como ‘macacada’ (p. 13). Teria, talvez, desumanizado a prima, único pertencente ao gênero humano no bandinho que foi participar da caçada? Recordemos que o resto do bando era composto de uma boneca de pano, um boneco de sabugo e um leitão. Isto, quanto à conotação racista da expressão ‘macacada’. O ‘de carvão’ pode ser visto tanto como algo proposital – e aqui, sim, haveria um insulto deliberado – quanto como o braço do Dr. Fantástico – personagem-título, vivido por Peter Sellers, de um filme de Stanley Kubrik (1964) sobre a possibilidade de uma conflagração nuclear, cujo braço direito se esticava à frente nos momentos mais impróprios, como se fosse independente do seu próprio cérebro. Isto é: pode ser visto como um ato falho, conceito bem conhecido dos psicanalistas. Considerando minha percepção acerca da obra infantil de Lobato, a segunda interpretação me parece mais razoável – e não o absolve, de modo nenhum, da qualificação de racista.

Lobato era racista. Sim. Mas o mesmo Lobato, quando editou o mulato Lima Barreto, nenhuma vantagem obteve disto: o editado sofria discriminação por ser mulato, não era autor consagrado que assegurasse à editora retorno. Teve, pois, o mérito de reconhecer-lhe as virtudes da obra. Algo que outros editores da época não tiveram. Ou, se tiveram, pensaram, primeiro, no retorno, até porque a empresa editorial também se volta a fins lucrativos. Ou será que também este fato deve ser objeto de esquecimento? Daí por que não surpreende a atualidade da reflexão da professora Daniela de Freitas Marques sobre o julgamento de Giordano Bruno, em obra que resenhei em outra oportunidade.

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Advogado, Porto Alegre, RS