Data de 1951 artigo do genial Paulo Rónai a tratar de chavões, intitulado ‘Anatomia do lugar-comum’. Seriam formas de se expressar tão novidadeiras, esses clichês, notou Rónai, que se impuseram de vez. Victor Hugo, por exemplo: largou tanto em suas páginas metáforas como ruisselant de pierreries (‘jorrante de pedrarias’) que tal metáfora, em sua época, passou para a bocarra do vulgo. Morreu, de pronto.
O niilismo coquete que se impôs ao chamado jornalismo investigativo traz muito desse defeito, com tantas e tamanhas doses de octanagem hipócrita: já que desde a morte de Tim Lopes, há dois anos, jornalismo investigativo virou moda, seu duplo, seu doppelganger, justamente, é a troca do melhor do que mais dele se aproxima. Ou seja: o duplo do jornalismo investigativo em estado quimicamente puro virou a cópia de boletins de ocorrência, de sentenças de juízes e de denúncias de promotores e de procuradores. Documentos que, no melhor do jornalismo investigativo, deveriam ser pontos de partida, viraram pontos de chegada. Mal sabem os repórteres que um dos axiomas mais adotados pelo nosso Ministério Público, in illo tempore , é naturalmente o in dubio pro societate – ou, melhor dizendo: na dúvida, condene.
Ao adotarmos denúncias como ponto de partida, estamos obviamente abarcando todos os limites de realidade tangível impostos pelo promotor ou procurador: os limites de quem será medido pelo número de denúncias que oferecer, da mesma forma que repórteres costumam ser derrisoriamente medidos pelos furos que costumam dar. O chavão da vez virou confundir gente que copia boletins de ocorrência com jornalistas investigativos.
Há pouco tempo, por exemplo, quando um deputado famoso esteve foragido da lei, um copiador de boletins de ocorrência colocou numa rádio que o fulano estava foragido na cidade de Lins, no interior de São Paulo. Detalhe: no jargão policialesco dos boletins de ocorrência, ‘Lins’ é um reducionismo a significar ‘local incerto e não sabido’. A cidade de Lins nunca abrigou tantos foragidos. Consta que pelo menos uma vez por mês, em algum lugar do Brasil, alguém publica ou põe no ar que algum procurado da lei está ‘homiziado na cidade de Lins’.
Direitos subjetivos
Duas observações, que transbordam as franjas citáveis da crítica de mídia, possam talvez dar maior dimensão ao fenômeno. Vêm da música e foram cunhadas pelo talvez maior pianista do século 20: Vladimir Horowitz. Primeira: ‘[Mozart] é fácil demais para principiantes, difícil demais para especialistas’. Jornalismo investigativo, donc, tem se mostrado difícil demais para especialistas. Pelo menos é o que mostram as estatísticas. Os últimos casos mais clamorosos noticiados com singular estardalhaço brotaram de investigações pré-preparadas por canalhas de plantão, por gente que vendeu fitas a peso de ouro ou por promotores/procuradores de ofício: seja o caso favela Naval, seja o caso Waldomiro Diniz, sejam as últimas acusações produzidas pelo Ministério Público Estadual de São Paulo contra Paulo Maluf.
Outra frase de Horowitz: ‘Quando deixo de estudar um dia, eu sinto a diferença; quando deixo dois, a crítica sente a diferença; quando deixo três, o público sente a diferença’. Nosso tresnoitado jornalismo investigativo tem deixado de apurar, a ponto de crítica e público terem sentido a diferença. Quando se fala de crítica, não pontua-se obviamente a crítica de mídia: estamos falando dos tubarões da advocacia, que de cinco anos para cá empertigaram-se naquilo que se convencionou chamar de fúria legiferante.
Já há alguns anos recomenda-se que pessoas ‘investigadas’ pelos nossos repórteres sejam processadas não pela lei de imprensa, com ceitil irrisório e prazo de prescrição baixíssimo se comparada aos prazos e preços a serem pagos numa condenação cível. A esta indústria de indenizações – que o ministro Marco Aurélio de Mello, do STF, chama de ‘uma grande loteria’ – foram acrescentados rótulos importantes na semana passada. A Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) negou, na terça-feira [1º/6], seguimento ao recurso extraordinário (RE 348827) interposto pelo jornal O Dia contra acórdão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ/RJ), em que se discute o prazo final para ajuizar ação por danos morais.
Segundo o STF, o jornal sustenta a negativa de vigência do artigo 5º, inciso V, da Constituição Federal, que assegura o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dando material, moral ou à imagem pelo acórdão do TJ carioca que entendeu não ter sido recepcionado o artigo 56 da Lei de Imprensa (Lei nº 5.250/67) pela Constituição Federal.
Alegou, ainda, que o exame referente à recepção ou não, pela Constituição, do artigo da Lei de Imprensa seria matéria própria, exclusiva do STF. Afirmou, também, que o prazo estabelecido pela Lei de Imprensa de três meses para o ajuizamento da ação de indenização por dano moral seria compatível com o regramento constitucional que assegura a indenização por dano moral.
O ministro relator Carlos Velloso, do STF, ressaltou que a discussão presente no recurso extraordinário é a questão da recepção ou não do artigo 56 da Lei de Imprensa pela Carta Magna. Velloso registrou que o acórdão recorrido decidiu que a referida norma, que estabelece ser de três meses o prazo decadencial para a ação de indenização por dano moral, contado a partir da data da publicação ou transmissão ofensiva, não foi recepcionada pela Constituição de 1988, de acordo com o artigo 5 º, incisos V e X.
O ministro relator entendeu que a Constituição abriu caminho para melhor tratar as situações que ferem a honra das pessoas, excluída a existência da limitação imposta pelo artigo 56 da Lei de Imprensa, que restringe a responsabilidade civil da empresa que explora o meio de informação ou de divulgação.
O ministro considerou o fato de que o sistema da Lei de Imprensa compunha, no seu tempo, até 1988, um cenário excepcional de condenação por danos morais. Porém, a Constituição de 1988 cuidou dos direitos subjetivos, privados ou, ainda, direitos relativos à integridade moral nos incisos V e X do artigo 5º.
Velloso entendeu que não poderia a ação, em que se pede a indenização, sujeitar-se ao prazo de três meses previsto no artigo 56 da Lei nº 5.250/67 (Lei de Imprensa). A Turma o acompanhou à unanimidade.
Loterias legiferantes
Trocando em miúdos: nem os apoucados três meses de prescrição, de que se valiam até hoje os repórteres investigativos, estão sendo mais garantias de um não-processo.
Não é para menos que há mais processos contra os grandes grupos jornalísticos do que jornalistas nas suas redações. Ou seja: para uma amostragem de 2.783 jornalistas, há 3.342 ações judiciais movidas, em todo o país, contra os grupos Globo (emissoras, jornais e revistas), editoras Abril e Três e os jornais Folha de S.Paulo e O Estado de S.Paulo.
Os dados foram levantados numa pesquisa de seis meses feita pelos jornalistas Márcio Chaer e Laura Diniz, do site Consultor Jurídico (www.conjur.com.br). Segundo o levantamento, a maior parcela dos processos é ajuizada por juízes, promotores, advogados e políticos. Juízes e advogados são também os profissionais que mais ações vencem contra jornais e jornalistas.
As empresas jornalísticas são mais acionadas do que os seus profissionais. A apuração feita por Chaer e Diniz mostra que há predominância absoluta de ações cíveis de natureza indenizatória – uma mudança radical em relação ao período anterior à Constituição de 1988. Apenas 150 ações (4%) são de cunho criminal. Caso a imprensa fosse condenada em todas as 3.192 ações indenizatórias, as empresas e jornalistas teriam que arcar com um pagamento de quase 65 milhões de reais, arbitrado pelo Superior Tribunal de Justiça – considerado o valor médio de 20 mil reais por indenização. Por outro lado, embora os jornalistas e as empresas sejam condenados em apenas 20% dos casos, a Justiça já chegou a arbitrar indenizações superiores a 1 milhão de reais em processos em que não cabem mais recursos.
Estarão as raízes do jornalismo investigativo entranhadas num hoje obscuro jornal, mesmo a título de quem estuda história de mídia, intitulado PM, jornal de esquerda que muito estardalhaço causava na Nova York dos anos 1940. A profissão de fé que era escrever no PM – de poucos dólares por mês e muito credo no jornalismo como missão – tinha como axioma a frase que se estampada na epígrafe da primeira página:
‘We are against the people who push other people around’
(‘Somos contra as pessoas que vivem dando rasteiras em outras pessoas.’)
Eis que o jornalismo investigativo copiador de boletins de ocorrência se defronta com um novo inimigo, nesse novo mundo de loterias legiferantes: ele próprio, que nunca deu tantas rasteiras como tem dado nele mesmo.
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Diretor da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo e autor A Falácia Genética: a Ideologia do DNA na Imprensa (Escrituras, 2004)