Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Lula, a força da mídia e a força do ‘estar na mídia’

Apurados os números e divulgados os resultados, o saldo da atuação da mídia nas últimas eleições ainda não foi devidamente analisado. As teorias da comunicação e do jornalismo que consideram a produção midiática uma construção do real podem nos dar algumas pistas. Neste texto, seguimos alguns passos da antropológica do espelho, uma teoria da comunicação proposta por Muniz Sodré para analisar a sociedade global marcada pelo inquestionável poder da comunicação.

A antropológica consiste em um avanço da idéia de agenda-setting, cujo conceito efetivo surgiu nos Estados Unidos em fins da década de 60 com Maxwell E. McCombs e Donald L. Shaw e inspirou numerosas pesquisas a partir dos anos 70. Shaw observa (apud Wolf, 1994: 130):

(…) em conseqüência da ação dos jornais, da televisão e dos outros meios de informação, o público sabe ou ignora, presta atenção ou descura, realça ou negligencia elementos específicos dos cenários públicos. As pessoas têm tendência para incluir ou excluir dos seus próprios conhecimentos aquilo que os mass media incluem ou excluem do seu próprio conteúdo. Além disso, o público tende a atribuir àquilo que esse conteúdo inclui uma importância que reflete de perto a ênfase atribuída pelos mass media aos acontecimentos, aos problemas, às pessoas.

O amadurecimento dos estudos leva os a autores a observar que (apud Traquina, 2003: 33-34):

Novas investigações, explorando as conseqüências do agendamento do enquadramento dos mídia, sugerem que os media não só nos dizem em que pensar, mas também como pensar nisso e, conseqüentemente, o que pensar.

Agendar e trazer um tema para discussão pública, portanto, não corresponde apenas a uma transmissão de fatos que compõem a realidade, mas também mediar e midiatizar o tema. Ou seja, a comunicação passa a funcionar não simplesmente pelo que é comunicado, mas soma-se a esta comunicação a força de o fato ser comunicado.

Considerando o poder da mídia e a simbiose que ela estabelece com as pessoas, a partir das três dimensões atribuídas por Aristóteles à vida humana em sociedade – o bios theoretikos (a vida contemplativa), o bios politikos (a vida política) e o bios apolaustikos (a vida dos sentidos, do prazer) –, Sodré identifica na sociedade contemporânea uma nova dimensão: o bios midiático.

Nesta concepção, a mídia – especialmente em sua escala global e virtual – assume um papel incomensurável na vida social. Ser midiatizado significa existir. Mais importante do que boas ou relevantes obras sociais, o mais importante é ser comunicado, ser midiaticamente veiculado. O mundo das celebridades, atores, atrizes, modelos e jogadores de futebol não nos deixam perder de vista este sentido.

Mas além da instância artística ou da cultura de massa do cinema e da TV, a dimensão do bios midiático atinge também outras esferas da vida social. Talvez a economia seja a mais sintomática de todas. A certeza, a aposta num sistema capitalista global não nos deixa dúvidas quanto a isso. Benjamim R. Barber (2002), ao falar sobre a mundialização da cultura e do capital, discute a forma como o mundo globalizado transforma-se num McWorld e a cultura norte-americana consegue colonizar todos os continentes, interessada em um domínio econômico global.

Nesta empreitada, o autor destaca o papel triunfante da imagem e a apoteose do existir midiático. Segundo Barber (2002: 44):

A videologia é mais fluida que a ideologia política tradicional, o que a torna ainda mais eficaz para insuflar valores que os mercados mundiais requerem. Estes valores não são tão impostos por governos coercitivos ou sistemas educativos autoritários; eles são transfundidos à cultura por pseudoprodutos culturais – filmes ou publicidade – dos quais deriva um conjunto de bens materiais, de acessórios de filmes e de divertimento.

Em escala global

A vida e as decisões populares de cunho político também estão plasmadas pelo bios midiático, pelo existir midiático, espetacular. A ocupação de um espaço na mídia passa a ser o condicionante único para a existência real. A eleição de figuras carimbadas do show business como o cantor Frank Aguiar e o ex-apresentador Clodovil não deixam dúvidas quanto a isso. Eles precisaram apenas existir, midiatizarem-se. A plataforma política que os sustentava, o debate, as argumentações, nada disso teve importância. A aparição e a ocupação de um espaço na mídia no qual o personagem carregava o ethos da cultura videológica substituiu todo o jogo político.

Assim, o político passa a ser um medium, alguém – ou algo – que assume os valores dominantes da cultura globalizada. Talvez isso explique, pelo menos em parte, a reeleição do presidente Lula, que esteve nesses quatro anos bem mais presente nos lares brasileiros do que o ex-governador paulista.

Em todo caso, podemos começar a pensar até que ponto o resultado das eleições 2006, mais do que uma vitória do agendamento e do poder deliberado da mídia – em que, como e o que pensar – é uma vitória do ‘estar na mídia’ e do bios midiático, uma nova dimensão da vida em escala global.

******

Jornalista, especialista em Jornalismo Político e Econômico, mestre em Ciências da Comunicação pela ECA/USP,e professor universitário em São Paulo