Tenho 74 anos e, talvez por isso, não consegui criar o hábito de acompanhar de perto o que se publica na grande rede. Contento-me com os jornais de papel, e mesmo os da TV não merecem minha atenção. Voltando à net: a exceção que confirma a regra é o Observatório – tenho sido um leitor diário, há vários anos, e até, de vez em quando, ensaio uma colaboração despretensiosa.
De uns bons tempos para cá tenho notado, da parte dos colaboradores, e por extensão dos leitores, uma desagradável má vontade para com tudo o que diga respeito aos nossos jornais e revistas. Com poucas exceções – por exemplo Luiz Weis, Carlos Brickmann, Muniz Sodré, Rolf Kuntz – que fazem também críticas severas, mas sempre com bom senso e coerência – para os demais parece nada haver de correto – e pior ainda, de boas intenções – nos jornais e revistas e nos jornalistas que os produzem.
Vinha minhocando essas coisas, sem criar coragem para me manifestar. Mas o artigo ‘Uma barriga monumental‘, de Luiz Antônio Magalhães, acabou com a hesitação. Em síntese, lembra ele que no dia 19 de setembro transcorreram dois meses desde a publicação, pela Folha de S.Paulo, da barriga monumental que dá título ao seu trabalho: ‘Gripe suína deve atingir pelo menos 35 milhões no país em dois meses’.
Magalhães, que já escrevera dois artigos para o Observatório sobre esse tema, mostra com números irretocáveis e cálculos precisos que, se isso tivesse acontecido, teriam morrido 210 mil brasileiros nesse período – mas de fato morreram apenas 1.031 pessoas, quase o mesmo número das que morreriam vitimadas pela gripe comum.
Mil razões
Com a segurança de quem já chegou ao futuro, e sabe que ele não é tão feio como foi previsto, o articulista não faz por menos: acusa o jornal de ter cometido ‘terrorismo’, ‘um dos maiores absurdos da história do jornalismo brasileiro’, ‘título irresponsável’ e por aí vai. Pergunta se, passados dois meses, o jornal terá coragem de reconhecer o erro, pois agora ‘os leitores deste Observatório (e também os do jornal) já sabem: a gripe suína nem de longe infectou 35 milhões de brasileiros’. E generaliza na conclusão, o que me leva a pensar na má vontade que escrevi acima.
Fui pesquisar o que se escrevia naquela época sobre a gripe suína. Eis alguns exemplos: no dia 19 de julho, na primeira página só a Folha. No dia 18, também na primeira página, O Estado de S.Paulo garantiu: ‘A gripe suína está se propagando a uma velocidade sem precedentes em comparação a outras epidemias’. No dia 20, ainda na primeira página, o Jornal do Brasil afirmou: ‘A gripe suína se propaga com velocidade sem precedentes no mundo’. No dia 22, o austero Valor Econômico postou (valerá o verbo para um jornal de papel?) na sua primeira página: ‘Gripe A pode custar até 4,8% do PIB mundial’.
Costumo escandalizar os leigos que me rodeiam afirmando que jornalista não precisa saber nada de nada, precisa saber apenas fazer jornalismo. Quando vai escrever sobre qualquer assunto, procura um especialista, ou vários, se tiver tempo, e escreve com segurança e acerto se for competente naquilo que é o seu mister. Os quatro jornais acima citados cumpriram esse dever, e divulgaram suas fontes na mesma primeira página onde apresentaram as previsões aterradoras. A Folha valeu-se de um modelo matemático preparado pelo Ministério da Saúde e foi prudente: utilizou, no seu título, o número mais baixo de doentes previsto: 35 milhões; o máximo era 67 milhões. O Estado e o JB valeram-se de estudos da Organização Mundial da Saúde. O Valor ficou no seu ramo de especialização: utilizou cálculos do Banco Mundial.
Para fazer as suas previsões, aquelas entidades especializadas formularam hipóteses com base em experiências passadas. Pode haver mil razões para que a gripe suína não tenha sido o perigo que se imaginou, mas uma delas é certa: a presteza com que os meios de comunicação – a mídia de que tanto se fala no Observatório – espalharam por todo o mundo os alertas sobre o perigo e os conselhos sobre como se prevenir contra ele.
‘Desespero evidente’
Isso que Magalhães chamou terrorismo pode ter diferentes efeitos. Benéfico, no caso da gripe; péssimo, no caso da imprensa.
Quem se der ao trabalho de ler os comentários que acompanham os artigos postados no Observatório vai constatar – e nem poderia ser diferente – que os leitores, de maneira geral, estão contaminados por essa má vontade que denuncio. Quase todos se regozijam diante de uma crítica devastadora como essa dirigida à Folha de S.Paulo. Se fosse só isso, poderia até ser considerado uma coisa divertida. Mas vejam o comentário espantoso postado pelo leitor Álvaro Martins no artigo de Magalhães:
‘Está comprovado já por inúmeras pesquisas que qualquer população amedrontada tende a tomar decisões e a votar de forma conservadora. Os profissionais de mídia sabem disso e tratam de trabalhar dia e noite para manter a população em estado de pânico. Então, preparem-se todos, porque a situação só vai piorar. Este final de semana, por exemplo, será dos mais difíceis, devido à (sic) mais uma queda do governador Serra nas pesquisas de intenção de voto para presidente. O irônico disso tudo é que o pânico está justamente tomando conta é desses profissionais de mídia. A cada semana, o desespero deles torna-se mais evidente nas manchetes dominicais dos jornalões.’
Não é assustador? Ou é isso mesmo que se pensa da mídia e de seus profissionais no Observatório?
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Jornalista