Tentando escapar da armadilha do tosco e estéril debate sobre a sobrevivência do jornal de papel e do rádio – pela sua exclusiva oralidade – é importante reconhecer que as inquietações a respeito das práticas jornalísticas e do que poderá vir a ser a própria imprensa parecem ter lá algum sentido. O impacto imediato que o jornalismo sofre vem, primeiramente, de uma super-oferta de informações – muitas delas, de relevância e, também por isso, de natureza noticiosa, e que estão disponíveis para o público em ambientes cada vez menos caracterizados como jornalísticos e sem a configuração e a aura institucional do que acostumo-nos a identificar como imprensa.
Há décadas McLuhan já procurava demonstrar que uma mídia não exclui a outra. O que se dá, geralmente, é um fenômeno de sucessão em que a nova se utiliza da anterior como base material e espelho para o estabelecimento de suas rotinas produtivas. Foi assim entre o rádio e o cinema, este em relação ao teatro e a televisão com todas as mídias que a antecederam e as tecnologias desenvolvidas até então. Claro, sempre também com um novo movimento de complexificação de códigos e linguagens presentes nos processos comunicativos.
Não há novidade em dizer que a discussão nada possui de novo. Aliás, é bem antiga. Em um de seus escritos, Machado de Assis, em janeiro de 1859, apresentava o que queria que fosse uma questão instigante: quem sobreviveria, o jornal ou o livro?
‘O jornal matará o livro? O livro absorverá o jornal?’ –, perguntou o escritor, que assistia atento ao aumento da presença de textos literários nas páginas dos diários cariocas. Machado mostrava-se um entusiasta da imprensa. Via nos jornais um local privilegiado de uma
‘literatura quotidiana – reprodução diária do espírito do povo, o espelho comum de todos os fatos e todos os talentos, onde se reflete, não a idéia de um homem, mas a idéia popular, esta fração da idéia humana’. (ASSIS, Machado de.1859: p. 948)
Machado percebia que ao livro faltava uma grande qualidade que tinham os jornais, que era ser um ágil espaço de discussão. Para o autor, o debate pela ‘imprensa-jornal’ dava-se de maneira animada e tomava fogo ‘pela presteza e reprodução diária desta locomoção intelectual’. Já pelo livro, o debate esfriaria pela morosidade. ‘Isto posto, conclui Machado, o jornal é mais que um livro’.
A redenção dos escritores
Praticamente já nos anos 60 do século 19, Machado de Assis via na imprensa de todo o mundo um extraordinário potencial de mudança, ou, como afirmou, de movimento e de progresso. O escritor chegou a utilizar-se de um curioso esquema comparativo, valendo-se da idéia da circulação monetária, tentando enriquecer sua argumentação. Jogando com a idéia de comércio (troca de qualquer gênero pelo dinheiro) e crédito (idéia econômica consubstanciada numa fórmula altamente industrial), Machado acreditava que o jornal, ‘operando uma lenta revolução no globo’, desenvolveria a própria indústria monetária, a riqueza e o progresso. Para ele, o desenvolvimento do crédito desejava o desenvolvimento do próprio jornalismo que, para ele, nada mais era que um grande banco intelectual, ‘grande monetização da idéia’.
Machado de Assis via, na verdade, outras possibilidades para o, digamos, ‘novo mercado das palavras’. Para o autor, esta relevância política e econômica dos jornais deveria atrair o ‘homem de letras’. Na visão de Machado, o escritor que até então não tinha o devido reconhecimento material para seu trabalho, poderia na literatura do cotidiano lançar-se agora como ator orgânico e ativo da sociedade. E provocava seus ‘colegas de letras’ ao perguntar:
‘Seria melhor a existência parasita, dos tempos passados, em que a consciência sangrava quando o talento comprava uma refeição por um soneto?’ (…) O jornal é liberdade, é o povo, é a consciência, é a esperança, é o trabalho, é a civilização. ?Tudo se liberta; só o talento ficaria servo?’. (ASSIS, Machado de.1859: p. 948)
Mas o próprio Machado corrigiu-se ao afirmar que mesmo um ‘aniquilamento’ do livro pelo jornal não poderia ser total. E que o desenvolvimento da imprensa-jornal seria, antes, um sintoma de uma nova época.
‘(…) o talento sobe à tribuna, a indústria eleva-se à altura de instituição.Preparar a humanidade para saudar o sol que vai nascer, – eis a obra das civilizações modernas.’ (ASSIS, Machado de.1859: p. 948)
Como Machado, outros escritores e intelectuais de diversas áreas perceberam logo o ‘novo sol’ que nascia para a ‘humanidade’ e como ele poderia ser fértil em reconhecimento social, político e algum retorno material – ou seja, a sensação de poder e suas compensações. O jornalismo como atividade profissional especializada no Brasil na segunda metade do século 19 sequer era uma questão colocada. Este debate toma corpo nas primeiras décadas do século 20 com a industrialização do país – o que, por conseqüência, também chega à imprensa. Mas, mesmo assim, por um bom tempo, a linguagem rebuscada, o polemicismo com objetivos políticos e eleitorais e o jornal carregado de textos literários de colaboradores deram a tônica aos diários brasileiros.
Daí para frente, é o que, mal ou bem, sabe-se: o Brasil, na sua tradição de dependência econômica e cultural, importou dos Estados Unidos o modelo do jornalismo de objetividade. Um processo fabril de produção da notícia que assumiu um discurso da imparcialidade e impôs goela abaixo dos redatores o que eles passariam a odiar: o lead. As redações mudaram, o copydesk surgiu como o todo-poderoso vigilante da obediência ao estilo, a romântica boemia e seus protagonistas sensacionais viraram momento de desabafo das frustrações e insatisfações do jornalista sobre o seu agora tolhido exercício intelectual. O repórter parece ter tornado-se um coletor de depoimentos para uma notícia meramente descritiva num jornalismo essencialmente declaratório. O jornal transformou-se, acima de tudo, num produto à venda. Bem diferente, imagina-se, do que Machado teria imaginado na metade do século 19, mesmo já falando àquela época em ‘monetização da idéia’.
As novas apostas
Se, de um lado, abrem-se hoje as potencialidades e mesmo possibilidades da profissão de jornalista com o surgimento de novas alternativas para o seu exercício, não se pode desconsiderar que, por outro, a produção e distribuição da informação deixam de estar restritas ao campo do jornalismo em função da multiplicação das fontes e descentralização midiática.
Não parece ser exagero dizer que, institucionalmente, a imprensa vem perdendo, principalmente nas duas últimas décadas, o que foi quase que uma exclusiva legitimidade de tratar e divulgar a informação. Sites, blogs, publicações alternativas, a avalanche crescente e descontrolada em que se transformou o correio eletrônico, e, por si só, o caráter híbrido (e sempre confuso) de programas radiofônicos e televisivos que mesclam jornalismo e entretenimento com a clara intenção de que não haja distinção entre os dois, têm contribuído muito para este processo.
O futuro das mídias – formas de convergência, de convivência e aplicabilidade – parece ser ponto de parada obrigatório em boa parte das reflexões acadêmicas e do mercado profissional hoje. Não é para menos. As possibilidades futuras da transmissão digital, as incertezas mercadológicas da pay TV – cabo e satélite –, as indefinições (e limitações) técnicas e físicas da web dão a sensação de que o assunto só comporta palpites e apostas. É importante dizer que as mesmas incertezas em relação ao desenho que as mídias terão daqui a duas ou três décadas parecem fazer sombra sobre o futuro do jornalismo e da imprensa que emergirá destas mídias.
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Professor de Jornalismo da PUCMinas e diretor da PUCTV