Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Mais não disse nem lhe foi perguntado

A revista Veja parece ter perdido a mão, se é que podemos dizer assim, quando o assunto é tratar de mortos. Em certa medida isso ilustra bem a tese defendida por alguns sociólogos de que a cultura brasileira não lida bem com a morte, que em nossa tradição judaico-cristã a morte se transmuta em silêncio e dor. E aqui uma contradição paralisante: mesmo sofrendo com a partida de uma pessoa não devemos nos sentir impedidos de celebrar, de colocar em alto relevo fatos importantes relacionados à vida de uma pessoa.


Preguiça mental é o mesmo que falta de pesquisa, empenho sobre o assunto a ser publicado. Parece que Veja descuidou por completo a assertiva dando conta que não se faz um bom obituário sem os fatos da vida da pessoa. Redigir um obituário que se ponha de pé exige ir atrás, fazer entrevistas, conversar com parentes, entrevistar amigos.


Há o precedente da excelência na arte de escrever obituários. Chamo de precedente por ser prática pioneira do New York Times, entrevistar o próprio obituariado, quando há tempo, quando se pega em vida. E essa prática do NYT remonta ao início dos anos 1960 e o objetivo desde então continua o mesmo: esclarecer ou conferir a exatidão de fatos obscuros sobre a vida do personagem. Obituário é, portanto, coisa séria e jamais deveria ocorrer de forma leviana ou inconseqüente como alguém que envia mensagem por Twitter avisando a morte de alguém. Nesse ponto, Veja e a linguagem-twitter convergem quando se trata de Mercedes Sosa – 140 caracteres no máximo, nem mais, nem menos.



Coleção de clássicos


Nos países anglo-saxões os obituários de jornais e revistas são, em geral, reconhecidos como os textos mais bem escritos do jornalismo. Estudiosos de jornalismo já ouviram falar de jornalistas como Robert McG Thomas e Alden Whitman, conhecido como ‘Mr. Bad News’ e imortalizado por Gay Talese no livro Aos Olhos da multidão. McG e Whitman ficaram conhecidos por terem um texto saboroso, que os aproxima muito do jornalismo literário, embora trate sempre da morte e, de alguma forma, renda tributo à tristeza ou ao início de uma saudade sem fim.


Qual o critério adotado para selecionar as pessoas que estarão no obituário? Embora trate da passagem desse para o outro mundo, a seleção de pessoas para este espaço é bem simples: tenha morrido recentemente, a pessoa ter uma história interessante de vida e, se não houver algo interessante a uma primeira vista, tenta-se descobrir algo ainda não conhecido.


Veja em edição nº 2134 (de 14/10/2009) publicou na seção ‘Datas’ dois obituários, se é que assim podemos chamar, ao menos, um deles. O primeiro foi sobre o fotógrafo Irving Penn, famoso por seu trabalho na revista Vogue. Já o segundo, por ser tão curto e oco, mereceria uma pausada reflexão. Não vale o esforço em buscar palavras para falar do obituário de Mercedes Sosa no filtro de Veja. Prefiro transcrevê-lo in totum. Lá vai:




‘Mercedes Sosa, a cantora do bumbo argentina. Dia 4, aos 74 anos, de doenças associadas ao subdesenvolvimento latino-americano, como o mal de Chagas, em Buenos Aires.’


Mais burocrático? Impossível. Faltou apenas aquele contumaz acerto de palavras utilizado à larga em termo de declarações junto à autoridade policial: ‘E mais não disse; nem lhe foi perguntado’.


Para uma revista que tanto bate o bumbo (olha o trocadilho) em sua publicidade institucional, dizendo ser leitura indispensável para os brasileiros, as 26 palavras e os 140 caracteres dedicadas àquela que é considerada a voz da América é a prova contundente do quão dispensável é a leitura de Veja. O leitor incauto ou medianamente informado que tome conhecimento da morte de Mercedes Sosa apenas por essas 26 palavras e esses calculadíssimos 140 caracteres (sem espaços) teria a impressão que a revista fala de alguém homônimo. Talvez uma artista mambembe desses muitos que levam alegria às pequenas cidades e vilarejos do Brasil profundo, trazendo sempre seu bumbo enfeitado de coloridas fitas do Nosso Senhor do Bonfim. Enfim, uma artista popular pouco conhecida da mídia em geral – seja esta pequena, média ou grande – que se apresenta em feiras populares em cidades como Caiçara do Rio dos Ventos (RN), Não me Toque (RS), Orlândia (SP), Campo Mourão (PR).


E, no entanto, Veja escrevia sobre Mercedes Sosa, aquela cantora embriagada de idealismo, encharcada do seu canto libertário e sempre mantendo pássaros soltos na garganta a nos comover com canções de Violeta Parra, de Victor Jarra, de Chico Buarque. Veja escrevia sobre a intérprete de Sueño con Serpientes, Años, Gracias a La Vida.


Mercedes Sosa teve muitos outros palcos. Em dezembro de 1994 cantou na Capela Sistina do Vaticano. Em fevereiro de 2002 ofereceu seu canto a um lotado Carnegie Hall em Nova York. Em maio de 2002 sua voz ecoou de dentro do Coliseu de Roma, ao lado de Ray Charles, momento em que fez um apelo apaixonado pela paz no Oriente Médio. Ela ganhou o Grammy Latino com o álbum Misa Criolla, em 2000, ganhou também o mesmo prêmio em 2003 com o Acústico e fechou o ciclo dos Grammys com o celebrado Corazon Libre, em 2006.


Gravou mais que 70 álbuns sendo que os últimos, Cantora 1 e Cantora 2, trazem uma coletânea de clássicos do folclore latino-americano interpretado por artistas contemporâneos como Shakira, Fito Paez, Julieta Venegas, Caetano Veloso, Joan Manuel Serrat, Joaquin Sabina, Lila Downs e Calle 13. Mas, para Veja, sua memória seria melhor lembrada como ‘a cantora do bumbo argentina’. E sua singularíssima vida teria que ser para sempre ligada com o mal de Chagas, uma das ‘doenças associadas ao subdesenvolvimento latino-americano’.


Voz eletrizante


Poucas vezes vi tanta acidez e intenção de ofender em texto tão curto e, ainda pior, em texto informando da morte de alguém. Será que a revista Veja desconhece completamente o Brasil, a ponto de entender que o povo brasileiro nunca ouviu falar de Mercedes Sosa? E se conhece o imaginário brasileiro devia saber que Mercedes fez muitos shows no Brasil, participou do antológico Chico & Caetano, produzido pela TV Globo em meados dos anos 1980, onde deixou registro memorável de Volver a los 17.


E não foi só. Ela gravou discos com Chico Buarque, com Milton Nascimento, Fagner e tantos outros artistas de longo curso em nossa história recente. Retratá-la como ‘Mercedes Sosa, a cantora do bumbo argentina’ é ofensa gratuita com imensa legião de brasileiros que ama a América Latina, que ama música dessa parte da América, também de pessoas que amam ouvir a boa música. E Mercedes Sosa sabia cantar assim como Oscar Niemeyer sabia tirar de sua prancheta palácios e catedrais e Clarice Lispector sabia pegar asas de borboleta sem machucar.


Reconhecida como símbolo latino-americano e principal voz da música argentina, temos a sorte de termos aqui nesse mesmo continente subdesenvolvido e onde prolifera ainda o mal de Chagas de meios de comunicação realmente indispensáveis. ‘Morre Mercedes Sosa, a Voz de América Latina’, foi este o título escolhido pelo diário espanhol El País para informar seus leitores da saída de cena de Mercedes Sosa. El País – o mais prestigioso e influente jornal publicado na Espanha – foi muito além do partidarismo tacanho que infesta boa parte de nossos veículos midiáticos. Recolho essa abertura do texto dedicado a Mercedes:




‘Milhares de seguidores na América Latina e na Espanha (país onde esteve exilada quatro anos durante a ditadura militar argentina) cantaram com ela sua extraordinária interpretação de Alfonsina e o mar, e outros sambas, chacareras, milongas e toadas popularizaram nos anos 70 e 80 o folclore latino-americano em todo o mundo e a converteram em uma das melhores e mais famosas intérpretes do continente.’


Outro destacado periódico espanhol, El Mundo, publicou com chamada em sua primeira página:




‘Apagou-se a voz de uma das cantoras folclóricas mais reconhecidas da Argentina e de toda a América Latina. Mercedes Sosa, apelidada carinhosamente `a Negra´ ou a voz da América, morreu aos 74 anos depois de quase 60 anos no mundo da música’.


O diário mexicano El Universal não apenas publicou extenso obituário como também abriu espaço para que os leitores expressassem seu amor por Sosa. Um desses emotivos testemunhos diz o seguinte: ‘Não se calará a cantora, Negra querida. Como a Cigarra, seguiremos dando Gracias a la Vida com Ela. E por Ela’. A Folha de S.Paulo (665 palavras/3.397 caracteres) assinalou que ‘com uma carreira de mais de quatro décadas, Mercedes Sosa foi uma das vozes mais representativas da música popular argentina e da América latina’.


E deu também no New York Times – e no mesmo dia de sua morte (4/10). A bíblia do jornalismo internacional publicou extenso obituário em seu sítio na web. O NYT resenhou a vida artística de Mercedes, chamou a atenção para suas muitas declarações publicadas nos meios jornalísticos e fez referência aos duros anos de seu exílio europeu. O NYT escreveu 868 palavras contendo 4.505 caracteres. Trocando em miúdos, o NYT multiplicou cada palavra publicada por Veja por 33. E não estou me referindo a jornal com sede e influência em Tegucigalpa, La Paz, Caracas ou Havana. Refiro-me ao New York Times, aquele jornal fundado em 18/9/1851 por Henry Jarvis Raymond e George Jones. Jarvis Raymond também auxiliou na fundação da Associated Press em 1856 e, já que nossa imprensa é tão autolouvatória, reforço que o New York Times ganhou seu primeiro Prêmio Pulitzer por reportagens e artigos sobre a Primeira Guerra Mundial, em 1918.


Aos inconformados com o obituário feito por Veja para Mercedes Sosa facilito aqui o acesso ao ótimo texto do jornal nova-iorquino. Adam Bernstein, jornalista do Washington Post, definiu ‘La Negra’ como ‘uma cantora que emergiu como uma eletrizante voz da consciência permeando toda a América Latina para defender a justiça social em confronto com a repressão estatal’.


Dobro do espaço


Desde a edição nº 2.115 (de 3/6/2009) até à nº 2134 (de 14/10/2009), a revista Veja publicou 44 obituários. São de 19 brasileiros e 25 estrangeiros. Dos estrangeiros, 16 são de nacionalidade norte-americana. Mortos ilustres que receberam mais espaço póstumo na publicação da Editora Abril foram a ex-presidente das Filipinas Corazón Aquino (203 palavras), o jornalista expoente do pensamento conservador norte-americano William Safire (201 palavras) e a atriz também norte-americana Farrah Fawcett (197 palavras). Sobre esta última, o longo texto traz este preciosismo (seria capaz de alterar a ordem natural dos planetas?):




‘A atriz, cujo pôster, com a foto que se vê na página ao lado, rivalizou com o de Che Guevara nas paredes do quarto de adolescentes da segunda metade dos anos 70.’


Alguns obituários, com o perdão da palavra que o assunto requer reverência, chegam a ser hilários. É o caso daquele de 45 palavras dedicado à atriz Brenda Joyce, ‘que interpretou Jane nos filmes de Tarzan da década de 40. Brenda atuou em cinco episódios do Rei das Selvas, nos quais contracenou com Johnny Weissmuller e Lex Barker. Dia 4, aos 92 anos, em consequência de pneumonia, em Santa Mônica’.


Portanto, Jane do Tarzan tem quase o triplo do espaço concedido por Veja a Mercedes Sosa. Exemplo da dispensabilidade de Veja é o obituário publicado em sua edição nº 2.117 (de 17/6/2009) contendo 49 palavras sobre o gabonês Omar Bongo, ditador africano que mais tempo permaneceu no poder. Informa que ‘de 1967 em diante, o corrupto Bongo enriqueceu e ajudou a manter seu povo na miséria’.


Outros são curiosos e só Deus sabe que bússola orienta (ou desorienta por completo) o responsável pelos obituários de Veja. Um destes é aquele em que a voz da vítima recebeu menos que um 1/3 de espaço nas páginas de Veja que aquele concedido à voz do torturador. Ambos argentinos, ambos contemporâneos. Refiro-me ao obituário da edição 2.129 (9/9/2009), com 81 palavras e 578 caracteres – tratando do ex-coronel do Exército argentino Mohamed Alí Seineldín, um dos maiores golpistas da atual democracia de seu país. Entre outras coisas destaca que o indigitado coronel ‘em 1988, liderou uma rebelião de militares que se auto-intitulavam caras-pintadas e que queriam evitar o julgamento de militares acusados de torturar e matar esquerdistas durante a ditadura’.


Ainda na categoria dos que chamo ‘curiosos’ temos na edição 2.115 (3/6/2009) obituário de uma criança de apenas 4 anos, que morreu acidentalmente ao brincar com uma esteira de corrida. Recebeu quase o dobro do espaço concedido a Mercedes Sosa. 49 palavras foram dedicadas à pequena Exodus Tyson, filha mais nova do ex-campeão de boxe Mike Tyson.


Alma latino-americana


Não sejamos ingênuos. A extrema parcimônia de Veja em negar espaço ao talento de uma mulher vibrante, encantadora de gerações de latino-americanos com palavras de ordem para resgatar a liberdade de opinião, liberdade de ir e vir e a liberdade de cantar deve-se mais ao pesado fardo ideológico carregado pela revsita. Afinal, sua versão para Gracias a la Vida, de Violeta Parra, tornou-se hino para os esquerdistas de todo o mundo nas décadas de 1970 e 1980, quando ela se viu obrigada a exilar-se e seus discos foram proibidos.


Nas incendiarias décadas de 1960 e 1970, Sosa foi expoente maior do ‘Nuevo Cancionero’, movimento altamente politizado que tratou de levar a música popular de volta a suas raízes. Ainda mais motivos para as escassas 26 palavras e 140 caracteres utilizados por Veja para retratar os 74 bem vividos anos de Mercedes Sosa? Bem, ela também integrou o Partido Comunista e suas posições políticas lhe trouxeram problemas durante a sangrenta ditadura militar argentina (1976-1983), na qual milhares de pessoas morreram com a repressão aos dissidentes de esquerda.


E por que o obituarista de Veja não mencionou uma palavra sobre seu exílio europeu? Essa é fácil. É pra lá de conhecido que os censores do Estado argentino proibiram canções de Sosa, e ela foi para a Europa em 1979, depois de ser detida durante um concerto na cidade de La Plata. Mercedes Sosa se definia com frequência como uma mulher de esquerda, ainda que sempre lembrava ter vocação para a música. Em uma entrevista publicada em 2005 ela afirmou que ‘na realidade, eu nasci para cantar; minha vida está dedicada a cantar, a buscar canções e a cantá-las’, e também que ‘se entrasse em política, teria que descuidar do mais importante para mim, que é o folclore’.


O carro-chefe da Editora Abril há muito vem investindo contra algo que seja genuinamente latino-americano. Em sua edição nº 2.028 (de 3/10/2007), publicou longo texto sobre o Che Guevara. A chamada da sombria capa não deixava por menos ‘Che – Há quarenta anos morria o homem e nascia a farsa’. Dezoito meses depois, em sua edição 2.110 (29/4/2009), a propósito de o presidente venezuelano Hugo Chávez haver presenteado o presidente norte-americano Barack Obama com exemplar do As veias abertas da América Latina, o texto da revista disparava:




As Veias Abertas da América Latina é um livro errado desde as primeiras letras, uma coleção de lamúrias e desastres em busca de culpados. Pouco importa que os fatos desmintam sua tese. Para as esquerdas, mais importante é a moral da história. Na de Eduardo Galeano, o lobo, como sempre, come o cordeiro’.


Com esse tipo de texto conseguirá a Veja deixar de ser dispensável?


Nos últimos anos de sua vida, após o fim da safra de ditaduras na América do Sul, Mercedes continuou lutando através de canções e apresentações mundo afora pelo fim da pobreza, valorizando as emoções universais como o amor, a justiça e a liberdade. Para seu sobrinho, o músico Chucho Sosa, tia Mercedes ‘é o melhor exemplo de honestidade artística, pois sua música reflete sua vida por inteiro’.


Além de tocar bumbo contra as ditaduras ela ganhou muitos prêmios. Sobre estes foi certeira, direta ao ponto:




‘Esses prêmios que ganhei não são prêmios só porque eu canto, mas porque penso, penso nos seres humanos, na injustiça. Acho que, se eu não pensasse assim, meu destino teria sido outro’.


A cidade de Buenos Aires suspendeu todas as atividades artísticas no domingo (4/10). Isso incluiu o adiamento da vasta programação prevista para celebrar o fato que o tango, no dia anterior, fora declarado pelas Nações Unidas como parte da ‘herança cultural do mundo’.


Pelo jeito Mercedes ainda vai bater seu bumbo por longo, longuíssimo tempo. É que o som do bumbo, em seu caso, toca de forma profunda a alma deste continente.


 


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Mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo