Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Mais poder aquisitivo e pouca qualificação cultural

Que a mídia tenha lá suas limitações é algo mais que sabido. Até aí, portanto, não há muito a explorar. Afinal de contas, há limitação em qualquer campo profissional. O problema está em se detectar se certas limitações da mídia decorrem de impossibilidades operatórias ou estratégicas. O que, na verdade, proponho para análise é se o que eventualmente se reconhece como ‘limitação’ não passa do que efetivamente é ‘desconforto’. Vamos, pois, a fatos. Dois temas ocupam, com intensidade diferente, jornais e revistas circulantes no país. São eles: 1) a crise do ‘apagão aéreo’; e 2) (este mais recentemente) a possibilidade de alteração nas regras do mandato presidencial.

Do acidente entre o Legacy e o Boeing da Gol até os dias atuais, somam-se centenas de matérias da mais variada natureza. Duas linhas de abordagem, pelo menos, predominam: 1) especulações em torno da responsabilidade pelo acidente; e 2) a exploração política do trágico acontecimento. O passar do tempo tem deixado claro que a segunda vertente é menos incômoda que a primeira. Pautar o acidente em si implica restrições de ordem jurídica, em razão de o processo, em detalhamento técnico, estar em plena execução. Assim, os periódicos têm destinado maior foco a desdobramentos de caráter político-governamental, seguindo o rastro aberto por setores parlamentares oposicionistas que vêem no fato ingredientes suficientes para abertura de uma CPI. O que, portanto, nessa ‘narrativa’, como ‘desconforto’, a mídia desprezou?

A cada crise nos aeroportos, fotos e matérias ilustram, enfaticamente, o descontentamento dos consumidores, em face, ora do descaso das companhias aéreas quanto à oferta de soluções em tempo hábil, ora no tocante à fragilidade do próprio sistema implantado no país, fruto de protelados investimentos à altura das exigências do setor. Inúmeras matérias exibiram (e, provavelmente, exibirão) reações agressivas (algumas delas, inclusive, de caráter físico) de usuários contra meros funcionários das companhias aéreas.

Bolsos e cérebros

Esse cenário é rico de informações. De um lado, a atitude covarde dos usuários que usam de violência contra quem não passa de simples funcionário, exposto a um quadro absolutamente insolvente, enquanto os reais responsáveis (empresários e gestores governamentais) estão protegidos em seus confortáveis escritórios e gabinetes. Haveria aí denso aspecto da psicologia social à espera de tematização. Todavia, a mídia, sem querer perder pontos junto à classe média (público-alvo prioritário das publicações) e sem poder confrontar a direção das companhias aéreas (setor gerador de altas verbas publicitárias), finge não ver.

Qual é o ponto nevrálgico da questão, ignorado pela mídia, a permitir da parte das companhias aéreas comportamento displicente em relação a seus clientes? Está aí, num só quadro, a junção de aspectos da política econômica dos recentes governos – rebaixamento do nível cultural da população brasileira e, por fim, o comportamento do empresariado nacional. Vamos por partes.

Que efeito gera política propiciadora de inserção de segmentos populacionais na economia ativa, modelo no qual se inserem tanto as gestões de Fernando Henrique Cardoso, quanto a de Luiz Inácio Lula da Silva? Tudo seria ‘divino e maravilhoso’ se, somado ao poder aquisitivo, houvesse igual fomento cultural. Em havendo apenas o primeiro, a conseqüência, a médio e a longo prazos, é simplesmente catastrófica. Pessoas adquirem possibilidade de realização material de certas aspirações, sem o menor preparo cultural para o usufruto. Na última década, como se sabe, triplicou a demanda de passagens aéreas. As companhias, entretanto, cientes do baixo grau de exigência qualitativa da nova população-cliente, negligenciam formas de atendimento, seja no que servem durante os vôos, seja no modo como operam a condução de seus negócios (prestação de serviços / manutenção / quadro de empregados).

Quando governos possibilitam mais dinheiro no bolso ignorando mais conteúdos nos cérebros, o resultado é a reatividade pela violência sempre que se frustram expectativas. Na crise, pois, do ‘apagão aéreo’, há três corpos deformados pela barbárie: política econômica pragmático-assistencialista, empresariado arrogante e negligente e usuários despreparados para o próprio consumo, bem como para a articulação de práticas reivindicatórias adequadas. Antes que pareça observação crítica de cunho elitista, deixemos as coisas claras.

Poder aquisitivo e qualificação cultural

Quanto mais pessoas puderem realizar seus sonhos (maiores ou menores), tanto melhor para a saúde do corpo societário. O problema se apresenta na assimetria entre poder aquisitivo e qualificação cultural. O fenômeno não é estritamente brasileiro. Para tanto, recordo artigo do ensaísta e sociólogo alemão Robert Kurz publicado no ‘Mais!’ (Folha de S. Paulo (19/09/04) com o título: ‘O declínio da classe média’. No referido texto, Kurz promove rentável diagnóstico quanto às razões estruturais que, em escala mundial, refletem acelerado processo degenerativo. No Brasil, o efeito é mais intenso por conta de defasagem histórica acumulada. Bem ou mal, na Europa, a despeito do rebaixamento qualitativo (Kurz denomina ‘proletarização da classe média’), ainda há um saldo capaz de tornar o quadro menos visível (ou chocante).

Ao apontar a cisão profunda entre poder aquisitivo e qualificação cultural, remeto ao cenário nacional da última década. O Plano Real, ao elevar o potencial de compra e de acesso a bens de consumo, multiplicou a expansão de subprodutos culturais, aspecto perceptível na música, publicação de livros, programas de TV e outros, criando modelagem cultural de baixa qualidade.

A expansão de uma classe média culturalmente frágil fica também exposta a um equivalente padrão de prestação de serviços. Ao final, tudo é marcado pela deterioração. O que emancipa o cidadão não é o poder de consumir, a exemplo do que, equivocadamente, preconiza Nestor Canclini. A rigor, a emancipação do cidadão deriva do nível de discernimento com o qual o consumidor elege o produto em função da relação necessidade/utilidade/prazer. Como se vê, não falta linha de abordagem que evite o lugar-comum dos noticiários recorrentes. Seria só explorar jornalisticamente. Todos, creio, lucrariam.

Suporte para a cumplicidade

O segundo tema proposto na introdução diz respeito ao tímido noticiário que tem sido mencionado a respeito de manobras no Congresso para a possibilidade de alterações na temporalidade do mandato presidencial. Até o presente momento, afora enfoque maior da Folha de S.Paulo, a média da mídia nacional tem sido muito cautelosa quanto à abordagem da questão. Eis aí mais um exemplo de ‘desconforto’ dos setores jornalísticos que, de momento, encontram componente perturbador relativo ao índice de popularidade do atual presidente da República.

Clóvis Rossi, articulista da Folha, em texto publicado na edição de sábado (14/4), formulou angulação crítica interessante. Todavia, atribuiu o propósito da extinção da ‘reeleição’ e a prorrogação do mandato presidencial para cinco anos como uma estratégia de parlamentares, em período de escassez de pauta. Como tal, o título do artigo foi ‘Falta do que fazer’.

Sem a intenção de polemizar com o articulista – que é um dos mais ativos na colaboração para a qualificação crítica do leitor brasileiro –, devo assinalar que o foco de Rossi, circunstancialmente, padece de maior substancialidade. A proposta de setores parlamentares, com o devido aval da Presidência da República, vai muito além de mera ‘falta do que fazer’ dos congressistas.

Sem entrar no mérito das conquistas do atual governo e, igualmente, sem promover considerações a respeito da PEC – que, na gestão de FHC, alterou o perfil do mandato presidencial –, o hábito de, ao sabor das necessidades fisiológicas, em parceria com ambições personalistas, se proporem alterações constantes na condução do processo político, induz o cidadão a compreender que democracia é um regime no qual o peso da circunstância é sempre maior que a consistência das instituições. Não é, portanto, algo eticamente construtivo.

Devemos recordar que, desde o retorno das regras da democracia, cada governo tratou de instalar alterações em função de seus próprios interesses. Assim procedeu o governo Sarney, ao alongar o mandato de quatro para cinco anos, usando, como moeda de troca, farta concessão de emissoras de rádio e televisão a grupos de parlamentares. Assim se deu na sucessão do impeachment, retornando ao regime de quatro anos. Assim ocorreu na gestão FHC, inserindo alterações constitucionais, por favorecimentos até hoje nebulosos e, agora, se pretende no segundo mandato de Luiz Inácio Lula da Silva. Sob qual expediente de troca? Será esse o caminho para fortalecimento das práticas democráticas? A mídia não pode tratar a questão na sua mera cobertura cotidiana, na mera cobertura palaciana, cujo alcance não ultrapassa a ‘fofoca’. Ela tem o dever de abrir espaços para configurações históricas.

O caminho único está em a mídia desfazer-se dos ‘desconfortos’ e assumir a maturidade exigida pelo enfrentamento das questões. Ou a mídia se emancipa, desgarrando-se dos grilhões que a prendem, ou terá, como destino irreversível, a missão de ser suporte para a cumplicidade que sempre protege os poderosos.

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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), Rio de Janeiro