Longe de ser um movimento uniformemente acelerado, materializando o progresso do pensamento como sugere freqüentemente a mídia, a História é como um rio de planície. Tortuoso em seus meandros, capaz de longos recuos, como uma serpente indecisa deslizando para o mar.
Convenhamos. Essa versão de o ‘Espírito Santo’ ser o responsável pela escolha do substituto de João Paulo II não seduz o mais pio dos homens, a menos que se tenha perdido completamente o raciocínio. Ou que estejamos retrocedendo em velocidade crescente na história das mentalidades. Ainda assim, os cardeais reunidos em Roma, com a pompa que faz da liturgia católica um espetáculo de enorme impacto emocional, reafirmam essa surpreendente forma de escolha com a naturalidade de quem anuncia o serviço da hora.
Naturalidade bem dissimulada, mas incapaz de encobrir suas contradições, mesmo que o filtro da imprensa não seja eficiente o bastante para detectar e neutralizar uma manipulação supostamente superada.
Se o ‘Espírito Santo’ é de fato quem escolhe o papa, o que estariam fazendo em Roma, com elevados custos de viagens, estadia e alimentação regada a bom vinho (pagos pelos fiéis, parte deles gente pobre do Terceiro Mundo) os 117 cardeais que compõem a congregação dos eleitores?
‘Santo, Santo, Santo’
Como se não bastasse, o ‘Espírito Santo’ voa um tanto atordoado nos últimos dias. Evidência disso é que em vez de pousar nos ombros do arcebispo do Rio de Janeiro, o reacionário dom Eusébio Scheid, e lhe soprar inspiração, quem parece ter feito isso é o Velho Nick. Aquele com muitos apelidos. Um deles o que nomeia um metal duro como o ferro, concentrado no coração da Terra, o níquel.
Se o Velho Nick anda fazendo das suas, espalhando discórdia, inveja e julgamentos irados por parte de homens que devem ser equilibrados, ao menos por exigências profissionais certamente é hora de os jornalistas, com as devidas exceções, também fazerem suas autocríticas.
Desde que Isaac Newton anunciou sua gravitação universal, em 1686-7, dando inteligibilidade para os acontecimentos dos céus, a Igreja Católica havia reduzido a manipulação da ignorância laica. Antes disso, toda vez que um cometa aparecia (no passado, populações majoritariamente rurais, céu pouco poluído e cidades mal iluminadas formavam um conjunto de situações favoráveis à observação astronômica) era interpretado como sinal de violência, guerras e destruição do mundo.
Naqueles momentos de comoção, os ricos com suas consciências pesadas costumavam fazer generosas doações à Igreja como forma de expiar culpas e garantir a salvação. A Igreja, mesmo sem refutar a idéia de que o fim estivesse próximo, aceitava de bom grado as ofertas mundanas, o que um estudante de direito classificaria hoje como chantagem capaz de colocar seus autores na prisão, ao menos por algum tempo.
Excetuando alguns textos mais críticos, entre eles o do escolado Clovis Rossi, enviado da Folha de S.Paulo, além das falas de teólogos dissidentes, os jornais vêm publicando uma montanha de lugares-comuns encharcada em lágrimas, relacionada às reações emocionais da multidão em Roma: ‘Santo, Santo, Santo’, foram as manchetes do sábado (9/4), referindo-se ao papa morto.
Síndrome de Sthendal
As reações em Roma fazem sentido por várias e diferentes razões.
A principal delas certamente está relacionada à liturgia. O espetáculo de representação da Igreja Católica é de fato poderosamente impactante. Especialmente no interior de uma cultura de massas, reproduzida e alimentada pela mídia, com a completa anestesia do aparato crítico.
Ou ainda porque a sociedade moderna, como um todo, está vazia de significados, completamente exaurida de conteúdos simbólicos – um dos registros que nos fazem, ou deveriam nos fazer, verdadeiramente humanos. É uma das contrapartidas das sociedades conduzidas pelo mercado, onde tudo é material, imediato e alienante.
Os chamados ‘jornalistas católicos’, como os religiosos conservadores, parecem sem a mínima condição de uma postura lúcida e crítica diante desses acontecimentos. Estão tomados pela comoção emocional. Aniquilados pela perda do seu líder.
Estudos que devem emergir em breve da antropologia, psicologia, psicanálise e mesmo da psiquiatria envolvendo a morte de João Paulo II certamente terão revelações fascinantes sobre esses acontecimentos como um todo.
Quem já leu alguma coisa sobre a Síndrome de Sthendal (tremores, suor frio e desmaio após uma observação de obras de arte, já que falamos de Roma e da Igreja) certamente não estará em desacordo com esta idéia.
Fiasco de audiência
Manchete do jornal O Globo da quinta-feira (14/4) registra a notícia da morte de João Paulo II como a de maior repercussão na história das comunicações. Mas não esclarece que ao longo do período de tempo deste papado houve massificação absoluta dos meios de comunicação global: internet, telefone celular e telefonia fixa, televisão (aberta e por assinatura). Mesmo o fax, que já é coisa do passado, nasceu e morreu neste ultimo quarto de século.
No mesmo dia, material disponível na internet relatava a emoção que tomou conta de jornalistas envolvidos com a cobertura do velório e sepultamento do papa.
Uma experiente correspondente mexicana teve crise de choro no ar. Valentina Alazraki, que por anos cobriu o papa João Paulo II para a rede Televisa e se converteu ao catolicismo, estava visivelmente abalada e não se conteve durante transmissão ao vivo da Basílica de São Pedro.
Na Alemanha, Anne Will, durona como costumam parecer os âncoras, lutava contra as lágrimas enquanto lia o noticiário numa rede pública de TV.
Algumas estatísticas, peste espalhada por economistas para dar consistência a teorias infundadas, falam de milhares de artigos e milhões de citações indiretas relacionadas ao papa desde o sábado de sua morte. Os números deixam no chinelo as referências ao ataque às Torres Gêmeas, no 11 de Setembro de 2001.
No sábado (9/4), no entanto, levantamento do Ibope publicado pela Folha de S.Paulo mostrava que transmissão do enterro teve pouco efeito na audiência da Rede Globo, que despachou para Roma quase todos seus correspondentes internacionais.
Segundo o Ibope, o enterro do papa foi um fiasco em termos de audiência se comparado com a Copa do Mundo de Futebol, de 2002. Mesmo transmitido de madrugada, a partida Brasil e Costa Rica registrou 59 pontos, contra uma média de 39 pontos da cobertura da morte do papa.
Homem do mundo
O que estaria acontecendo com a objetividade jornalística, esse comportamento pavloviano que produz urticárias no príncipe Charles e que Aldoux Huxley desdenhou em um de seus livros, A Ilha?
Com o papa enterrado, seu substituto definido pelo ‘Espírito Santo’ e as ruas romanas limpas do lixo e urina acumulados nestes dias de delírio religioso, talvez a antropologia e as ciências afins forneçam alguma resposta. De qualquer maneira, pelos olhos e as palavras de quem faz a cada dia um retrato do mundo, caso dos jornalistas, continuaremos mantendo essa pretensa superioridade sobre o Oriente, baseado na idéia obtusa de que culturas islâmicas não passam de ajuntamentos fanatizados, desejosos de um canto no céu acompanhados das tais 70 virgens, como sugeriu o papa morto?
Ou poderíamos esperar por alguma reflexão?
Certamente haverá quem se dê ao trabalho de tratar os acontecimentos religiosos no Oriente e Ocidente num interessante trabalho de culturas comparadas. As romarias a Meca, cidade sagrada do islamismo, e as cenas que se desenrolaram em Roma, com jornalistas calejados esvaindo-se em lágrimas.
Os ‘jornalistas católicos’ continuarão utilizando, como se fosse natural, expressões como ‘santo padre’ – sem o emprego de aspas – para se referir ao papa, recusando-se a admitir a presença de um juízo de valor?
Neste caso, serão, ao lado dos religiosos refratários, os últimos capacitados a reflexões mais arejadas envolvendo, entre outros desafios, a xenofobia crescente neste mundo, resultado de um processo de planetarização referido há tempos por historiadores portugueses.
Jornalistas são fundamentalmente criaturas que correm contra o tempo, como se houvesse chance de sucesso nesse empreendimento. Como corredores contra o tempo, primam pela sumariedade. Parecem pouco interessados em compreender que enquanto a globalização envolve fundamentalmente uma internacionalização de mercados, a planetarização é um fenômeno mais amplo. Diz respeito a um estágio de desenvolvimento de uma sociedade tecnológica. Reflete um determinado estágio histórico, de interação de culturas, daí a xenofobia inevitável.
As raízes deste processo de planetarização estão no século 15-16, com as viagens de descobrimentos em Portugal, quando mudamos de estágio civilizatório. Não sem antes a Igreja produzir estragos que podem ser a explicação para a ruína do império português, segundo admite o historiador inglês Charles Boxer.
Talvez o desinteresse pelo enterro do papa, identificado no Brasil, a maior nação católica do planeta, remeta a acontecimentos que ocorreram na Espanha, no atentado à estação de trem em Madri.
O governo direitista de José Maria Aznar, por desfaçatez e interesse político às vésperas das eleições nacionais, atribuiu ao grupo basco ETA a iniciativa do ataque. A população, no entanto, antes das redações, percebeu o logro e mudou de opinião, elegendo os socialistas de José Luis Zapatero.
Talvez a escolha do novo papa de alguma forma influa nisso tudo. Se o escolhido for um homem do mundo, capaz de evitar que seus problemas com a sexualidade sejam ampliados pelo planeta afora, já teremos feito algum progresso.
Mas, por enquanto, tudo parece depender do ‘Espírito Santo’.