Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Manuel Pinto

‘Nos contactos regulares que tenho com estudantes, surgem, por vezes, comentários e questões sobre o que escrevo neste espaço e, mais raramente, sobre as próprias funções de provedor. Recentemente, e ainda a propósito das colunas de dois domingos recentes em que o tema foi a polémica desencadeada pelo presidente da Câmara do Porto com as medidas que decidiu tomar com os meios de comunicação social, a conversa com os alunos evoluiu para o conceito de qualidade no jornalismo e na imprensa e, ligado com ele, para o de imprensa de qualidade.

‘Haverá características relativamente às quais se possa, finalmente, avaliar e decidir se os jornais têm ou não qualidade? E serão essas qualidades, a existirem, mais próprias de certos tipos de meios ou, por outro lado, partilhadas ou partilháveis por todos eles?’ Estas eram, no essencial, as preocupações manifestadas.

Na tentativa de resposta, alguém sustentava que, se as regras do código deontológico fossem bem aplicadas, isso bastaria para haver qualidade, uma vez que nele se compendiariam todas as que, para tal, seriam necessárias. Ao que alguém contrapôs que, se assim fosse, poderia dar-se o caso de os jornais serem todos semelhantes, o que manifestamente não se passa.

Olhando, de facto, para o leque de ofertas disponíveis, não necessariamente apenas à escala do país, podemos verificar uma significativa diversidade de projectos editoriais e de propostas de conteúdos e de formatos. Pode dizer-se que, em sentido amplo, tal diversidade é, por si mesma, e do ponto de vista dos cidadãos, um primeiro índice de qualidade. E o que se diz do conjunto de títulos poderá igualmente ser transposto para o universo de um único título considerando que um jornal generalista, como o Jornal de Notícias, trata diariamente a multiplicidade de aspectos que são mais relevantes para a vida pública, a qualidade assentaria, assim, num primeiro patamar, na diversidade dos assuntos tratados, capaz de restituir aos leitores um quadro vasto e multifacetado da vida social. E não apenas dos assuntos, mas igualmente dos géneros utilizados no seu tratamento (a notícia desenvolvida ou breve, a reportagem, a entrevista, a crónica …), nos modos de os apresentar (a composição, ilustração, infografia …) e na capacidade de ajudar a compreender o significado do que se noticia (os contextos, os antecedentes, as leituras e opiniões, etc).

Ainda a este primeiro nível, poder-se-ia a acrescentar um aspecto que não sendo exclusivo do jornalismo impresso, nele tem um lugar muito especial. Refiro-me à qualidade do uso da língua portuguesa. De facto, um português deficiente – na ortografia, na sintaxe, no estilo – denota uma falta de profissionalismo que pode ser ruinosa e, a prazo, até fatal, para o trabalho e para o ‘produto’ jornalístico.

É frequente ver utilizado o conceito de ‘jornal de qualidade’ ou ‘de referência’, insinuando tal expressão que a qualidade seria apanágio de determinado tipo de publicações periódicas. Estudos feitos nas últimas décadas caracterizaram este tipo de jornais com um conjunto de características das quais se destacariam a ênfase dada a matérias de política nacional e internacional e de economia (e a consequente desvalorização de outras áreas); a aposta numa informação contextualizada e, sobretudo na tradição europeia, interpretada; e uma imagem de seriedade reconhecida quer pelos restantes media, quer pelas fontes de informação quer pelos cidadãos. Mas este perfil tem vindo a ser objecto de revisão e de crítica, sobretudo desde os anos 90. Tem sido questionada, particularmente, a associação do conceito de jornalismo de referência ao de qualidade. Uma série de derrapagens éticas, ocorridas precisamente nesse tipo de jornais (The New York Times, Washington Post, Le Monde, por exemplo) mostra que ser de referência para as elites culturais e políticas não significa necessariamente ser de qualidade. Por outra parte, muitos destes jornais de referência, por razões que se prendem com a resposta a um decréscimo e envelhecimento de leitores, têm vindo a ensaiar respostas que põem, também elas, em causa o ‘retrato’ corrente sobre o referido tipo de jornalismo. Daí que, ainda na semana que passou, num estudo de Hector Borrat, divulgado em Barcelona precisamente sobre esta problemática, se concluía, de forma eloquente ‘há diários populares de qualidade e diários de elite que carecem de qualidade’.

Esta conclusão vai perfeitamente de encontro a um conceito que o Jornal de Notícias tem adoptado nos últimos anos, e que consiste em assumir-se como ‘um jornal popular de qualidade’. A característica popular é, neste contexto, a expressão de um esforço de ser compreendido por (e de ser relevante para) um leque amplo de segmentos sociais (e não apenas pelas elites). Traduz-se, designadamente, na aposta em cobrir com destaque e com profundidade todas as áreas relevantes, mas particularmente as matérias sociais. Mas isso representa um desiderato que tem, cada dia e em cada edição, de ser traduzido na prática. Num processo em que o contributo dos leitores é absolutamente crucial. Perdendo-se esse laço, perde-se a alma do próprio jornal.’