Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Manuel Pinto

‘Há casos relatados nos meios de comunicação social que, de tão horrorosos que são, deveriam ser várias vezes sopesados, antes de serem trazidos a público. Um daqueles que se inscreve nessa categoria é o da bebé originária de uma aldeia próxima de Viseu, há praticamente um mês internada no Hospital Pediátrico de Coimbra, vítima de maus tratos imputados aos pais, incluindo alegado abuso sexual,.

O JN entendeu dar destaque ao assunto e fez a sua manchete do passado dia 15 de Dezembro com o título ‘Violação da bebé confirmada’. O trabalho vinha ilustrado com a foto do pai da criança, no momento em que era conduzido ao Tribunal, e ocupava ainda a secção ‘Em foco’, nas páginas 2 e 3. Cinco jornalistas foram destacados para cobrir e tratar o caso, da Redacção do Porto e das delegações de Viseu e de Coimbra. O tratamento do JN motivou o protesto da leitora Odete Silva, de Vila Nova de Gaia. Numa mensagem enviada por correio electrónico, interroga o provedor ‘Acha aceitável que o JN pespegue com o nome da menina em todas as notícias? Na quinta-feira passada [a tal edição do dia 15] vi o nome repetido várias vezes, até na primeira página, e já fiquei revoltada. Então não é que hoje vocês põem o nome dela num título de letras grandes? É uma vergonha.’ E desabafa ainda: ‘De certeza que se fosse uma familiar de algum dos jornalistas ou de um amigo que escondiam muito bem escondido o nome dela’.

Ao mesmo tempo, no sítio da Internet Blogouve-se (http//ouve-se. blogspot.com), do jornalista João Paulo Meneses, decorria um debate sobre o comportamento dos media acerca deste caso. Numa nota inserida a 26 de Dezembro, aquele jornalista, depois de estranhar que os provedores em exercício ainda não tivessem tratado do assunto e de lamentar o silêncio do Conselho Deontológico dos jornalistas, comenta: ‘Será que se entende – e pergunto sem qualquer ironia – que a identificação, tal como apareceu em quase todos os órgãos de comunicação social (o Expresso foi uma excepção) não terá consequências de futuro para a criança, que na escola ou entre os amigos ninguém saberá que ela passou por isto quando ainda não tinha dois meses?’.

Ouvi, a propósito destas mensagens, o coordenador da delegação de Coimbra que anotou o facto de ter editado a primeira peça sobre o caso, no dia 14. ‘Aí – faz notar o jornalista – pese embora soubéssemos o nome da criança, deliberadamente não o escrevemos, pois entendemos, como ainda entendo, que essa é uma informação irrelevante para a notícia em causa, e que na medida do possível a identificação da vítima deve ser salvaguardada’. Acrescenta ‘Ao contrário do JN, no dia seguinte outros media publicaram o nome da menina, não fazendo sentido a partir daí não o escrever, pois a identificação da vítima já tinha sido tornado pública e não seria por nós o omitirmos que salvaguardaríamos o que quer que seja’.

Por haver, nesta matéria, aspectos relacionados com a orientação editorial, o provedor quis conhecer igualmente a posição da Direcção do JN. O director-adjunto David Pontes, depois de ouvir os editores mais directamente envolvidos no processo, confirma, em traços gerais, o que refere o jornalista citado que o facto de o nome da vítima ter sido ‘profusamente divulgado por outros órgãos de comunicação social, nomeadamente pela televisão’ levou a que se considerasse não fazer sentido a reserva por parte do JN. Acrescenta, no entanto:

‘Não foi, na opinião desta Direcção, o juízo mais correcto. De facto, estando a criança viva, não faz qualquer sentido não manter a reserva do nome, mesmo tendo ele sido erradamente divulgado por outros. Daí que, logo que fomos alertados para o facto, tenha sido acordado entre todos retirar o nome da vítima de futuras peças e tomar o máximo de atenção em casos similares que venhamos a noticiar’.

Em resumo, o JN começou por tratar o assunto mantendo sob reserva o nome da criança violentada; alterou tal posição, passando a divulgar o nome em vários dias seguidos e de forma destacada, com o argumento de que outros meios de comunicação social, especialmente a televisão, também o fizeram; por fim, no noticiário mais recente, adoptou a orientação de não divulgar o nome da vítima. Relativamente a esta criança, porém, já dificilmente se poderá reparar os danos causados.

O comportamento do Jornal de Notícias, neste caso, merece reprovação por dois motivos em primeiro lugar, por ter-se servido do argumento da infracção alheia para também infringir, numa matéria em que está em causa um direito fundamental da pessoa humana; em segundo lugar, por não terem funcionado mecanismos de alerta e de mudança de comportamento, quando, na edição do dia 15 de Dezembro o nome da vítima foi várias vezes impresso, incluindo na primeira página, sendo que havia na Redacção quem tivesse clara noção de que a identidade da bebé não devia ser revelada.

Resta, apesar de tudo, sublinhar o reconhecimento, por parte da Direcção, de que o juízo ‘não foi o mais correcto’ e de que se irá ‘tomar o máximo de atenção em casos similares’.

Os erros dos outros não podem servir de desculpa para os nossos erros’



***

‘Dois motivos de inquietação’, copyright Jornal de Notícias, Porto (Portugal), 8/1/06

‘Dois pontos, no caso do bebé de Viseu, suscitam a maior inquietação. Como foi possível que quase toda a grande comunicação social – rádio, televisão, imprensa, meios digitais – se tenha entregue, aparentemente sem escrúpulos, à revelação do nome de uma vítima de maus tratos tão chocantes? Não deixa de ser grave que, nesta imolação colectivamente praticada, não tenha havido distinções entre os media fizeram-no inclusivamente os ditos de referência, mesmo aqueles em que os respectivos livros de estilo proíbem expressamente tal prática.

Mas não menos inquietante é o facto de, perante uma violação tão generalizada, não ter surgido (notícia de) qualquer iniciativa por parte das entidades com capacidade para a tomar desde logo a Alta Autoridade para a Comunicação Social, mas também o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas, os conselhos de Redacção ou as estruturas de protecção de crianças e jovens. Mas o facto de o provedor ter recebido uma única mensagem a este propósito indicia que também nós, enquanto cidadãos, vemos e calamos tão flagrante violação de um direito.

O destaque dado a estas matérias radica, na maior parte dos casos – façamos essa justiça aos jornalistas – na convicção do interesse público de tal informação e na crença de que a divulgação dos casos e das suas envolventes poderá levar a sociedade a criar ou melhorar mecanismos de prevenção. Contudo, estes objectivos, que são certamente de enaltecer, comportam dificuldades e mesmo riscos graves, sobretudo porque podem provocar uma dor acrescida em quem já é vítima de determinadas situações. No caso das crianças, que nem sequer se podem defender, pode lançar sobre elas um estigma que transportarão para o resto da vida.

É por isso que boa parte dos códigos deontológicos (incluindo o português) alertam para o respeito que os jornalistas devem ter pelos direitos das vítimas à dignidade, ao bom nome, à imagem e a não verem o seu sofrimento ainda mais ampliado pelos media. E que proíbem expressamente a revelação da identidade de vítimas de crimes sexuais, especialmente quando se trata de crianças. No caso presente, os media portugueses deveriam, como forma de atenuar o mal causado, assumir um código de conduta claro e corajoso nesta matéria, tendo em conta, especialmente, os direitos das crianças. Seria uma forma de, um dia, a menina de Viseu sentir que o seu calvário tinha ao menos abalado a consciência dos media.’