Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Manuel Pinto

‘Com esta crónica termino o mandato de dois anos (não renováveis) de provedor do leitor do Jornal de Notícias. A avaliação do trabalho que realizei compete não a mim, mas ao Jornal e, sobretudo, aos próprios leitores. Cabem aqui, porém, algumas notas de balanço e prospectiva.

O provedor costuma ser definido ora como um mediador entre o jornal e o seu público ora como um defensor dos leitores junto da Redacção e da empresa que publica o jornal. Além dessas funções, procurei, pela minha parte, fazer da função uma oportunidade para debater em público o jornalismo, a partir dos problemas suscitados pelos leitores ou por minha própria iniciativa. Não entendo a provedoria como um tribunal. Disse-o desde o começo do mandato. E por essa razão, mais do que condenar ou absolver, tive como preocupação cultivar a auto-vigilância e fazer reflectir sobre (e, sempre que necessário, mudar) os critérios, modos de trabalho e opções editoriais. Que um órgão de comunicação com o JN aceite ser criticado em público, na sua própria casa, no dia da sua maior audiência, só pode decorrer da vontade assumida de querer fazer melhor e de prestar um mais efectivo serviço à sociedade. A tal vontade deve corresponder um exercício da crítica que seja sério e eficaz. O que supõe que o modo de actuar do provedor não se converta nem na justificação do jornal perante o público (o que o tornaria num agente de comunicação e imagem) nem num justiceiro implacável (que suscita mais anti-corpos do que já é esperado). Afinal, o provedor do leitor deve preocupar-se em tornar a sua função de mediador eficaz. Isto é, o exercício deveria ter alguma repercussão não só no ‘produto’ que o leitor recebe, mas na atitude e na relação do Jornal com os seus leitores, ainda que dificilmente se possa medir essa eficácia em toda a sua extensão.

Indo mais longe, entendo que o provedor poderia ter um papel na criação de espaços e de oportunidades de encontro, para os leitores expressarem – mesmo oralmente – os seus pontos de vista e apresentarem as suas propostas. Esse foi um eixo de actividade de cuja importância me fui apercebendo com o tempo, mas a que não consegui meter ombros, a não ser pontualmente, por não exercer o cargo a tempo inteiro e como ocupação dominante.

Daquilo que descobri e aprendi, nestes dois anos, um ponto se destaca. Nós, portugueses, somos ainda muito conformistas e estamos longe de exercer em plenitude os nossos direitos de cidadania. Muitos de nós, leitores, nem sequer conhecemos os direitos e responsabilidades que nos cabem como cidadãos, como consumidores, como pessoas. Ora quem não conhece o que lhe cabe, não exerce e fica condenado à menoridade da cidadania. Mas não basta conhecer. Muitos conhecem, mas não dispõem dos recursos para as iniciativas (de protesto, de comentário, de aplauso) que se imporiam. O que é verdade é que são poucas, relativamente à audiência do JN, as pessoas que comentam e participam no seu jornal. E muitas das que escrevem ao provedor fazem-no por motivos que pouco têm que ver com as funções deste, mas antes por causa das opiniões dos colunistas, dos anúncios das páginas de classificados, da distribuição do Jornal ou dos produtos vários comercializados pelo departamento de marketing.

Isto significa que muito do que se pode fazer neste campo cabe certamente à educação escolar, ao associativismo e às iniciativas da vida cívica, mas cabe também, e em medida não pequena, aos meios de comunicação e ao JN em particular, que continuam a ser instituições sentidas como inacessíveis, por quem está de fora. Se este Jornal quiser abrir-se mais – e eu julgo que só teria a ganhar com isso – precisa de tomar medidas, algumas delas bem simples como seja dar mais dignidade e, porventura espaço, à secção de cartas do leitor; publicar com mais destaque os endereços vários para os quais os leitores possam contactar os departamentos do Jornal, incluindo o do próprio provedor; e, sobretudo, instituir com regularidade um espaço de informações sobre as iniciativas, opções e critérios relacionados com a vida do próprio jornal. Do ponto de vista pedagógico, esta última medida pode contribuir em muito para que quem lê se sinta implicado e tome o jornal como projecto que também é seu. O JN carece de ser mais conversado com os seus leitores. Carece de os envolver mais, apelando à sua participação. Mesmo sabendo que há riscos implicados nesse caminho. Finalmente, e para que o Jornal se torne uma instituição já não digo de ‘paredes de vidro’, mas ao menos de portas abertas, tem de cuidar muito mais do seu espaço na Internet. Neste terreno, e apesar daquilo que já foi feito, eu diria que está quase tudo por fazer.

Ao provedor, que exerceu a função com total autonomia, resta agradecer aos responsáveis editoriais e aos jornalistas que responderam às solicitações que lhes foram dirigidas (em particular àqueles que o fizeram atempadamente) e agradecer aos leitores que, através das suas queixas e comentários, quiseram contribuir para um JN de mais qualidade. Esta função não acaba aqui e espero e desejo que, em breve, saibamos quem será o novo titular do cargo. Desde já, e daqui, lhe desejo felicidades.’

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‘O provedor, os media e a cidadania’, copyright Jornal de Notícias, 29/1/06.

‘Em Portugal há um deficit de democracia participativa, nomeadamente no que aos meios de comunicação social diz respeito. O cargo de provedor, de criação ainda relativamente recente, constitui, apesar disso, uma das mais visíveis formas de auto-regulação dos media.

Através da tomada em conta das queixas e sugestões, do esclarecimento de dúvidas, da promoção de uma cultura de exigência, de assunção e correcção de erros e de silêncios, o provedor constitui não apenas um factor acrescido em ordem à qualidade da comunicação social, mas igualmente – e como aqui já observei anteriormente – um agente da literacia mediática e da participação cívica.

Os media, sobretudo quando diários, trabalham frequentemente ‘sem rede’. Os acontecimentos são complexos e exigem muitas ponderações o interesse público das matérias, os interesses atribuídos aos destinatários, as condições e recursos para recolher os factos e perspectivas mais pertinentes. Como se isso não bastasse, a margem de tempo para a revisão e o olhar distanciado é por norma escassa.

Em tais condições de pressão, não é de admirar que todos os dias haja erros. Há-os de todo o tipo de critérios de escolha do que se noticia (é sempre mais o que fica por publicar do que aquilo que é publicado); erros avaliação sobre o destaque ou o espaço dado a um certo assunto; erros de paginação ou de montagem; erros de escrita; trocas, gralhas e outras imperfeições.

Há erros mais graves do que outros. O principal, aquele que inquina tudo e que mais mina a credibilidade de um jornal e ameaça a confiança dos leitores é o da sobranceria. Não reconhecer que se erra e não corrigir as falhas cometidas é o pior que pode ter um jornal. Sem essa atitude de humildade, não pode medrar a disponibilidade para o reconhecimento de outras lacunas mais graves e mais difíceis de detectar, nomeadamente as relativas ao silenciamento a que os media votam certas problemáticas ou espaços da vida social e as relativas ao olhar enviesado com que, sem se dar por isso, outras são noticiadas.

Por todas estas razões, e dadas as responsabilidades do audiovisual nas nossas sociedades, daqui se saúda a próxima entrada em funções dos novos provedores do radiouvinte e do telespectador, na rádio e na televisão públicas.

O jornal carece de ser mais ‘conversado’ com os seus leitores’