Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Maomé e o processo de mundialização

Num momento em que as chamas se propagam pelo mundo islâmico, como forma de protesto a ofensas pretensamente cometidas contra o profeta Maomé – representado em charges da imprensa européia com um turbante abrigando uma bomba – outros assuntos podem parecer desinteressantes do ponto de vista jornalístico.

Muita gente pode estar considerando os islâmicos – e os árabes de forma geral, na ausência de esclarecimentos mais convenientes – bárbaros primitivos. Fundamentalismos de fato – no caso de fundamentalistas de fato – não são a via mais promissora para a compreensão da insondável complexidade do universo, da beleza e tenacidade da vida e do enorme intrincado da cultura humana que reflete como um espelho tudo o que parece existir de forma autônoma, mas é, para dizer o mínimo, processado e representado pela mente humana.

O Universo e tudo que ele abrange é o que a consciência humana diz que é. Se os golfinhos, por exemplo, tiverem opinião diferente, ainda não comunicaram isso aos humanos e talvez nunca venham a fazê-lo. Será sempre uma consciência de golfinhos. Já os humanos se abrigam e se definem como humanos no interior das culturas. Das diferentes culturas que pontuam pelo planeta e que, em conjunto, são a melhor percepção que se pode ter para o que nos ensinaram a chamar de humanidade.

Os humanos se comunicam entre si especialmente pela fala, com o uso de palavras, e aqui emerge um universo paralelo, carregado de simbolismo. Os símbolos podem ter e com freqüência têm, cargas diferentes nas diferentes culturas. E a manipulação desses símbolos pode produzir estranhamentos culturais com conseqüências variáveis, especialmente levando em conta o ambiente em que se manifestam.

Exclusivamente a título de exemplo poderíamos nos perguntar qual seria a reação, no Ocidente, se Jesus Cristo ou sua mãe, a Virgem Maria, fossem representados da mesma forma. Com seus corpos transformados em esguios lançadores de cargas mortíferas sobre acampamentos de refugiados, festas de casamentos, vilarejos onde até então a vida corria plácida e inalterada e, repentinamente, foram transformados na pior imagem que se possa conceber do inferno. Como os cristãos ocidentais reagiriam?

Jornal conservador

É preciso ponderar que o Ocidente há muito, desde a revolução científica do século 17, dessacralizou o mundo. Dessacralizar o mundo, neste caso, equivale a concebê-lo quase à imagem de um gigantesco mecanismo de relojoaria o que, mesmo não se apoderando da totalidade das consciências, certamente é o único processo que faz sentido para uma maioria de miseráveis filosóficos. De carentes de especulação que dê sentido ao existir, e por isso mesmo ‘viciados’ em consumo, para tomar de empréstimo a metáfora recente de George W. Bush sobre os americanos.

O Oriente é, literalmente, a outra face do mundo e sempre teve um significado controvertido, apesar, por exemplo, do sentido claro, mas quase imperceptível, da expressão ‘orientar-se’, com o sentido de tomar consciência. O Oriente é onde o Sol nasce e o Ocidente onde ele se põe, ao menos para um observador na superfície da Terra.

O ato mais recente de estranhamento cultural veio da Europa do Norte, normalmente associada a sinônimo de boa cultura e tolerância cultural, ao menos no interior do que se concebe freqüentemente como ‘boa cultura’. Foi deflagrado por um jornal conservador, o Jyllands-Posten, da Dinamarca, que há cinco meses publicou as charges. Nelas, além da cabeça-bomba do profeta, aparece ainda um religioso prevenindo um suposto grupo de homens-bomba: ‘Calma, calma, estamos com falta de virgens’.

Analistas de página 2

Este segundo caso é ainda mais evidente de estranhamento cultural. As tais virgens a que se refere a charge não são outra coisa senão o que o romancista francês Sthendal (Marie Henry Beyle, 1783-1844) chamou de ‘promessa de felicidade’. Possivelmente a metáfora foi diluída em sua própria origem (no Oriente), o que não pode nem deve ser interpretado como acidente unilateral. Estamos repletos de perdas do lado de cá, e a mídia, de maneira geral, mais contribui para essa diluição que estimulou ou estimula alguma reflexão.

Qual o significado, por exemplo, da estupidez mórbida de uma diluição do porte deformante de Big Brother? A resposta está, entre outros lugares, numa obra-prima que foi levada ao cinema nos anos 1970, com interpretação magnífica de Jane Fonda: A noite dos desesperados, baseada num romance curto e dilacerante, como um golpe de peso-pesado, o livro They shoot horses, don´t they?, de Horace McCoy. Se voltasse às telas hoje, A noite dos desesperados, que mostra a decadência de valores envolvida com a crise econômica dos anos 30, não teria a mínima repercussão. Certamente teria o desconcerto de se contar e ter que explicar a mesma piada.

Analistas de plantão, postados nas páginas 2 dos diários mais conservadores (alguns vinculados a instituições tão retrógradas e obsoletas para o que seria um pensamento contemporâneo, como a Opus Dei) certamente farão ironia do caso das charges nos próximos dias. Mas na tragédia não há espaço para ironia. A tragédia é o domínio absoluto do horror.

Idéias sem sentido

E a tragédia, embora possa estar astronomicamente distante da percepção dos analistas da página 2, é que o planeta esteja cindido entre dois hemisférios, para não falar em quatro se, além do Oriente/Ocidente também for considerado o Norte/Sul. Ocupar-se pontualmente, se quisermos, maniqueistamente sobre este mais recente exemplo de estranhamento cultural será apenas uma contribuição adicional ao obscurantismo e à intolerância. Para não dizer de uma variação de sadismo.

Mas as análises, seguramente, vão retomar a trilha batida da liberdade de imprensa. E o problema central certamente não é este. O editor dinamarquês que primeiro publicou as charges, além de um editor do France Soir que fez a mesma coisa e acabou demitido, são vítimas acidentais de um acidente histórico maior. Trata-se, neste caso, do que se convencionou chamar de ‘ossos do ofício’.

O cisma Ocidente/Oriente que divide o planeta ao meio insere-se no contexto da planetarização, processo de mundialização mais amplo e complexo que a globalização referida por sociólogos e economistas de lógica rápida. Diz respeito a uma aventura humana com raízes mais recentes no vôo de Iuri Gagarin, o primeiro homem a se libertar do confinamento gravitacional.

No Brasil, idéias como esta não fazem qualquer sentido para articulistas de página 2, sem noções elementares de astronáutica. E os articulistas de página 2 quase sempre são (como diz a regra) mais a própria regra que a exceção. Ainda que, para prevenir certo fundamentalismo, seja necessário ponderar que toda regra tem suas exceções.

História de mentalidades

Para dar sentido mais claro à idéia de planetarização, de que o pensador francês Edgar Morin é um dos poucos gestores neste momento, certamente vale a pena retomar uma frase do pai da Astronáutica, o russo Konstantin Tsiolkovski (1857-1935): ‘A Terra é o berço do homem, mas ninguém pode viver eternamente no berço’.

O processo de planetarização traz consigo uma quase inevitável xenofobia como resultado das interações culturais (sem falar nas intervenções por interesses estratégicos, caso das reservas de óleo no Oriente Médio que não são estranhas a essa ordem de violência cultural) geradas um determinado processo histórico. A retomada de certas referências, ainda que para marcar novos e repetidos combates, é apenas uma retomada, num percurso que ninguém sabe dizer, de um ponto de vista civilizatório, aonde nos conduzirá.

Os analistas de página 2, no entanto, continuarão fiéis a seus pontos de vista estreitos, o que significa dizer que, na hipótese otimista, o jornalismo opinativo está com os dias contados em favor da alternativa interpretativa, marcada pela devida contextualização histórica.

Este é um desafio que está bem debaixo dos nossos narizes, o que não quer dizer que possa ser bem encaminhado. Afinal, um país subdesenvolvido não é outra coisa senão o resultado de uma certa história de mentalidades.

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Jornalista