Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Marcelo Beraba

‘Não se pode dizer que a Folha não dê atenção à crise do Haiti. Mas o jornal errou ao trazer de volta, antes de encerrada a apuração da eleição presidencial, a equipe que enviou para Porto Príncipe.

A Folha acompanha regularmente o noticiário da ilha, enviou vários repórteres para lá desde que o Brasil passou a chefiar as tropas da ONU e só neste ano publicou três editoriais sobre o drama dos haitianos e o papel do governo brasileiro.

A atenção se justifica. Em primeiro lugar, porque o Brasil não desempenhava um papel internacional dessa natureza há muito tempo. Ao enviar soldados, o governo brasileiro mexeu em sentimentos nacionalistas adormecidos. Só assim se entende a cobertura inflada e acrítica que marcou a preparação e o embarque das tropas. Outra razão a justificar tanta atenção é o fato de que a participação do Brasil faz parte de sua estratégia para obter um lugar no Conselho de Segurança da ONU.

Mas o motivo mais importante é que a situação daquele país é de total calamidade. Ao pisar em solo haitiano, o Brasil se meteu numa grande confusão, e há questionamentos sérios, por parte de entidades internacionais, em relação ao comportamento das tropas da ONU comandadas pelos brasileiros.

Só neste ano, o jornal destinou uma página de sábado da seção ‘Tendências e Debates’ para discutir se o Brasil deve continuar ou não a missão no Haiti, enviou, em janeiro, o repórter Iuri Dantas para Porto Príncipe (‘Só incerteza sobre o futuro une haitianos’) e fez uma ótima reportagem com soldados brasileiros que voltaram da ilha (‘Soldados revelam o horror da vida no Haiti’, 29/1).

Diferentemente de outras ocasiões, a equipe de repórter e fotógrafo que a Folha enviou para cobrir as eleições presidenciais, Fabiano Maisonnave e Jorge Araújo, chegou a Porto Príncipe com alguma antecedência. A eleição estava marcada para o dia 7, e a primeira reportagem (‘Haiti está pronto para a eleição, afirma general Elito’) foi publicada no sábado, dia 4.

O jornal deu destaque para a cobertura no domingo, dia 5 (‘Haiti tem candidatos suspeitos de crimes’), e nos dias seguintes, inclusive com chamadas e fotos na primeira página. A eleição foi tumultuada e a apuração, mais ainda. Era de imaginar que a equipe de jornalistas permanecesse em Porto Príncipe até o final da apuração. Mas não foi o que ocorreu.

A última reportagem foi publicada no domingo, dia 12, e apontava de forma clara para os problemas que estavam por vir. Segundo o texto do repórter, pela primeira vez desde o início da apuração o candidato favorito, René Préval, ficara abaixo dos 50% dos votos válidos que garantiriam a vitória no primeiro turno. Maisonnave previa ‘protestos violentos’ caso Préval não vencesse no primeiro turno.

E foi o que ocorreu. Mas a Folha já não estava lá para acompanhar as denúncias de fraude e a seqüência de manifestações populares que encurralaram a comissão eleitoral e obrigaram os países que monitoravam a apuração, entre eles o Brasil, a impor a manobra que garantiu a vitória de Préval e evitou um imprevisível segundo turno.

Não entendi por que o jornal retirou a equipe antes da hora. Não posso crer que tenha sido por questões financeiras.

Escrevi na crítica interna de terça: ‘É incompreensível que o jornal não tenha mantido o enviado especial ao Haiti para cobrir as eleições presidenciais até a divulgação final do resultado. Nada fazia supor que seria uma apuração tranqüila. O resultado está nas páginas de hoje -’Brasil pede que conselho da ONU avalie Haiti’ e ‘Protesto deixa primeiro morto; hotel é invadido’-, noticiado com a ajuda de agências internacionais e a partir da Sucursal de Brasília’.

Pedi uma explicação e o jornal admitiu o erro. Eis a resposta que recebi do jornalista Marcos Guterman, editor interino de Mundo: ‘Sim, considero que foi um erro não ter mantido o repórter Fabiano Maisonnave no Haiti por mais tempo. Nosso planejamento para essa cobertura foi prejudicado pela evolução confusa dos acontecimentos, sobretudo a demora na contagem dos votos e a crise que isso ocasionou. Devo enfatizar que esse problema não aconteceu só com a Folha -os repórteres mandados pela concorrência deixaram o Haiti um dia antes do nosso’.

É verdade, os jornalistas enviados pelo ‘O Estado de S. Paulo’ e pelo ‘O Globo’ também voltaram para casa antes da hora. Mas isso não justifica o erro da Folha. Revela apenas que os nossos grandes jornais erraram juntos.’

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‘E na Rocinha’, copyright Folha de S. Paulo, 19/2/06

‘No final da tarde de quarta-feira, por volta das 18h, a Rocinha, bairro onde vivem cerca de 60 mil pessoas, foi invadida mais uma vez por bandidos de um dos comandos que dominam os morros do Rio. Os invasores, cerca de 40, segundo a polícia, arregimentados em cinco favelas dominadas pelo Comando Vermelho, pretendiam expulsar o bando que hoje domina a venda de drogas.

Eles entraram atirando nos transformadores e deixaram o morro sem luz. Embora soubesse do plano da invasão, a polícia não se preparou para abortá-lo ou para reprimi-lo. O enfrentamento entre os bandos resultou em cinco moradores mortos -um deles, estudante de 14 anos que acabava de chegar do colégio e os outros, trabalhadores que voltavam do serviço- e cinco feridos por balas perdidas ou atropelados na correria provocada pelo pânico.

Os invasores foram rechaçados e fugiram. Uma parte escapou pela mata que circunda a favela e saiu do outro lado do morro, no Alto Leblon, um bairro onde estão localizados alguns dos imóveis mais caros do Rio.

A Folha foi mal nesta cobertura. Apesar de a invasão ter começado por volta das 18h, a edição de quinta-feira não trouxe nem sequer um registro. E a Edição SP, concluída à meia-noite, tinha apenas uma nota pequena. A edição de sexta-feira recuperou o noticiário, gerou uma chamada na primeira página do jornal e uma página e meia no caderno ‘Cotidiano’, mas o enfoque, na minha opinião, era equivocado.

O jornal noticiou a invasão e as mortes, mas seu principal destaque não foi o horror mais uma vez vivido pelos moradores da Rocinha nem a ineficácia criminosa da polícia. A manchete interna do jornal (‘Áreas nobres viram rota de fuga do tráfico’) foi a apreensão que tomou conta dos moradores do Alto Leblon ao constatarem que o bairro protegido estava vulnerável.

Esse não é um problema novo e não atinge só a Folha. O ponto de vista dos jornais em casos como esse tende a ser o da classe média ou da classe alta atingida pelos desdobramentos da violência.

Uma evidência dessa visão distorcida é o noticiário sobre o reflexo nas escolas. Os jornais quase sempre dão notícias dos colégios particulares famosos localizados na proximidade da favela que suspendem as aulas. E as escolas que funcionam na favela? O que acontece com elas e com seus alunos não é notícia.

É como se a favela e seus moradores não fizessem parte da cidade. Vários estudiosos têm chamado a atenção para a forma equivocada como a imprensa vem fazendo a cobertura desses bairros. Na Folha, quem percebeu o problema foi o colunista Demétrio Magnoli no texto ‘Em território inimigo’, publicado em 20 de outubro. ‘O conceito implícito é que as favelas configuram um território inimigo e um teatro de batalha, não uma parte da cidade do Rio de Janeiro. O primeiro corolário é que os habitantes das favelas são estrangeiros, não cidadãos brasileiros. O segundo, que entre eles se oculta uma força militar hostil, não a teia complexa formada pelo crime organizado e pela delinqüência comum, com incontáveis ramificações no morro, no asfalto e na própria polícia’.’