Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Marcelo Beraba

‘É raro encontrar uma edição da Primeira Página da Folha como a de domingo passado. Parece ter sido desenhada com a explícita preocupação de uma distribuição milimetricamente equilibrada do noticiário crítico referente aos dois grandes partidos que disputarão a Presidência, o PT e o PSDB.

No alto da capa, uma no cravo e outra na ferradura. O editorial ‘Abuso de poder’ condenou o comportamento do governo federal no caso da quebra ilegal do sigilo bancário do caseiro Francenildo Costa: ‘A desfaçatez, o uso sistemático da mentira, o empenho em desqualificar qualquer denúncia, nada disso constitui novidade no comportamento do governo Lula. Chegou-se nos últimos dias, entretanto, a níveis inéditos de degradação ética, de violência institucional e de afronta às normas da convivência democrática’.

Ao lado, a manchete reproduziu o resultado de uma auditoria na Nossa Caixa e de uma investigação do Ministério Público: ‘Nossa Caixa beneficia aliados de Alckmin – Verba publicitária foi direcionada para publicações e programas de políticos da base tucana’. Um a um.

Na parte de baixo da capa, mais PSDB e PT. A colunista Mônica Bergamo informou que a primeira-dama de São Paulo, Lu Alckmin, ganhou mais de 400 peças de alta-costura de um estilista, ‘O guarda-roupa de Lu Alckmin’. (Embora não tivesse o tom de denúncia, a revelação questionava o ‘banho de ética’ prometido por Alckmin ao se lançar candidato a presidente.) E o ator Lima Duarte deu uma entrevista em que chamou o presidente Lula de ‘imbecil’ por ‘glamourizar a ignorância’. Dois a dois.

Ao longo da semana, o noticiário político reforçou a idéia de que os dois partidos ‘são iguais’ – na política econômica e nos desvios éticos.

Na segunda-feira, caíram o ministro da Fazenda, Antonio Palocci, por conta da quebra ilegal do sigilo bancário do caseiro, e o assessor de Comunicação do governo de São Paulo, Roger Ferreira, apontado, segundo o jornal, como um dos coordenadores do direcionamento de recursos da Nossa Caixa para favorecer a base aliada do PSDB paulista. Títulos da edição de terça: ‘Palocci cai; Mantega assume’ e ‘Caso da Nossa Caixa provoca demissão de assessor de Alckmin’.

Na quinta-feira, a divulgação do relatório da CPI dos Correios ofuscou a viagem ao espaço do primeiro astronauta brasileiro e reforçou a idéia de que os dois grandes partidos se assemelham. ‘O ceticismo com os resultados futuros do relatório da CPI dos Correios só faz aumentar quando oposição e governo debatem o teor do texto (…). Uma investigação cujos resultados estão abertos a negociação política não pode ser levada tão a sério’, reclamou o editorial ‘Aquém do esperado’, na sexta-feira.

Naquele dia, o jornal ainda manteve uma boa cobertura do caso Palocci e destacou, na Primeira Página, que a Assembléia Legislativa vai investigar as doações para Lu Alckmin. Mas o caso Nossa Caixa já tinha sumido do jornal. E o anúncio da saída de José Serra da Prefeitura para disputar o governo do Estado omitiu a informação mais relevante: não lembrou aos leitores que Serra, instado pela própria Folha, havia assinado uma carta garantindo que não renunciaria para concorrer a outro cargo.

Em compensação, o jornal publicou dois editoriais com críticas a Alckmin: na terça-feira, ‘Alckmin deve explicações’, a propósito da Nossa Caixa; e na quarta, ‘Nova onda de motins’ apontou para o ‘fracasso’ da política penitenciária.

Os leitores

Entendi a Primeira Página do domingo e os desdobramentos do noticiário nos dias seguintes como um esforço do jornal para oferecer uma cobertura eleitoral equilibrada num campanha que já está marcada pela ‘exasperação exagerada’, como lamentou o ex-ministro Palocci antes de deixar o governo.

Nem todos os leitores, porém, tiveram a mesma leitura e recebi várias críticas ao jornal. Não citarei os nomes dos leitores por que aproveitei textos pequenos de mensagens longas e por que não tive condições de obter as necessárias autorizações.

As mensagens que acusam o jornal de ser antipetista são mais freqüentes e já tratei disso em colunas anteriores. Desta vez recebi mais reclamações dos que questionaram as reportagens que envolveram Geraldo Alckmin. Uma delas: ‘Acho que existe uma tendência de o jornal procurar uma notícia ruim contra um candidato, mesmo que ela seja fraca, imprecisa ou mal-fundamentada, e apresentar essa notícia com destaque para contrabalançar outra notícia contra outro candidato, mesmo que ela seja fortíssima, detalhada e incontestável’.

Uma leitora reclamou de Mônica Bergamo, ‘chata e implicante’, por ter entrevistado o ex-estilista de Lu Alckmin: ‘Fofoca ainda vai, mas maldade não’. No mesmo dia, outro queixou-se da entrevista com Lima Duarte (que depois pediu desculpas a Lula e à Globo), ‘preconceituosa e violenta’.

Um leitor reclamou, com razão, que as cartas selecionadas para o Painel do Leitor foram majoritariamente críticas em relação ao governo Lula.

Um raro elogio: ‘Vejo nestes dois artigos -os editoriais ‘Palocci sai, a crise fica’ e ‘Alckmin deve explicações’- a postura de um jornal que quer se identificar com a lisura, com a coerência, cobrando de todos, independentemente de que partido seja. Corrupção não tem cor, ideologia ou partido’.

Reproduzo dois comentários gerais. O primeiro: ‘Temos atualmente três tipos de fazer imprensa: a imprensa que usa o jornalismo investigativo lúcido, a imprensa que usa o jornalismo investigativo que vê conspiração governamental em tudo e a imprensa ‘urubu na carniça’, que age com os fatos como se ‘empurrasse bêbado em ladeira’, beirando o sensacionalismo’.

O outro: ‘Partido, oposição e imprensa entraram num jogo em que sempre o limite anterior é avançado. São gravações interceptadas, sigilos quebrados, invasão de privacidade, e tudo isto é conduta ilegal. (…) O vale-tudo que virou o jogo democrático desde as primeiras denúncias parece não ter limite. (…) E a imprensa, não teria um papel construtivo? Acho que está na hora de reavaliar as relações da imprensa com sigilo de fontes, com promiscuidades no Ministério Público, com interesses escusos’.

Turbulência

Toda eleição é difícil de ser coberta, mas esta será pior, tal o acirramento entre os dois grandes partidos e o jogo pesado de denúncias. Ainda vamos viver um longo período de turbulência. Tem razão o leitor que chama a atenção para o risco de um equilíbrio forjado, em que o jornal valoriza uma notícia ‘fraca’ contra um candidato para contrabalançar uma acusação ‘incontestável’ contra o adversário. Mas não acho que isso tenha ocorrido na semana.

Têm razão, também, os que temem o sensacionalismo, os exageros e as injustiças. Por isso é necessário uma vigilância permanente dos leitores.

A obrigação da imprensa é combinar uma cobertura jornalística crítica, investigativa e questionadora -e, portanto, com forte carga negativa- com a necessidade de abrir espaços para a discussão positiva sobre o futuro do país. É um desafio, porque as pessoas parecem cansadas, tanto de denúncias como de promessas.’