‘Greves estouram agora em vários países do mundo. As mais famosas são as do mundo desenvolvido e rico: pararam funcionários do serviço de transportes e os estudantes na França, os roteiristas em Hollywood, os contra-regras dos teatros da Broadway, os músicos do teatro Scala, de Milão. Até agora, prevalece a disposição de negociação ao menos retórica, dos grevistas e das autoridades. Contrastam com as greves que acontecem no Brasil no seguinte: a atitude eqüidistante, levemente simpática dos principais meios de comunicação em relação aos grevistas. Mesmo nos Estados Unidos, a mídia esforça-se para tratar a greve com neutralidade. Sindicatos têm poder lá, grevistas em geral têm boa situação, lêem jornais e revistas. O medo de eventuais campanhas de boicote acaba funcionando como elemento de dissuasão.
Lá os movimentos grevistas não são imediatamente vistos como ilegítimos por resultarem de manipulação. Nisso já há uma certa ofensa, só às vezes justificada, aos grevistas. Esses são encarados como cidadãos que exercem um direito previsto nas regras do jogo. Os veículos de comunicação dão espaço para reivindicações dos trabalhadores, cujas lideranças são ouvidas e têm seus argumentos registrados com intenção de igualdade em relação às outras partes (empregadores, governo). A greve, em princípio, não é criminalizada.
O contraste com a maneira como os meios de comunicação brasileiros tendem a encarar movimentos grevistas é evidente. Quando trata de luta entre classes, de divergências entre empreendedores (potenciais anunciantes) e trabalhadores, o jornalismo no Brasil cede facilmente, abandona a pluralidade. Quando os tribunais e a polícia são chamados a agir, portanto, não o fazem em terreno virgem. O trabalho de desgaste junto à opinião pública já foi previamente realizado pelos meios de comunicação. Essa atitude parcial é outra marca do atraso brasileiro. Ela tem a ver com a falta de independência do comando das redações no Brasil em relação aos interesses das empresas proprietárias dos veículos. Sim, porque os objetivos do jornalismo e a natureza dos negócios favorecem visões muitas vezes diversas. Aquilo que faz a independência de um veículo nem sempre coincide com seus interesses comerciais mais imediatos, se bem que é a separação entre Redação e os administradores do negócio o maior fator para a construção da imagem e do respeito de um veiculo junto ao público. A prova disso é o valor pago recentemente pelo ´Wall Street Journal´. Independência editorial tem a ver com independência dos editores. É uma instituição que está na base do melhor jornalismo de diversos países, como os EUA e a França. Infelizmente, está extinta no jornalismo brasileiro, a um ponto de não deixar rastro. Como imaginar um diretor de Redação ou um editor-chefe brasileiro dizer não a um proprietário de veículo de comunicação sob o argumento da independência? Está extinta, mas tem uma importância cultural e política que falta ser mais bem estimada pela sociedade. A imunidade do editor deveria ser reconhecida e cultuada como a de outros operadores institucionais.
Hoje, por exemplo, o iG publica o mesmo título da BBC de Londres: ´Greve nos transportes públicos gera caos na França´. Enquanto isso, na França, o direitista ´Le Figaro` diz em manchete que ´não há ainda perspectiva de melhora` e o centro-esquerdista ´Le Monde` descreve a mesma situação em manchete: ´Na gare de Lyon em Paris, uma manhã muito calma´. Até agora, sem caos.
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Zoofilia em Chennai (13/11/2007)
É sempre na Índia, na Rússia, na China, algum lugar distante da Ásia. Lá existe uma aldeia tão longínqua que ninguém se dá ao trabalho de checar a veracidade. De lugares assim chegam regularmente notícias estranhas, que ganham destaque quando sites buscam aumentar seus registros de audiência. A Ásia deve ter algum tipo de condição que a faz origem do ruim e do bizarro. Vêm de lá a gripe ´asiática´, a febre ´asiática` e também as ´notícias asiáticas´.
Agora é o registro do casamento de um indiano com uma cachorra. Onde? Em ´Manamadurai, a 470 quilômetros da cidade de Chennai, na Índia´. Não é fácil descobrir onde fica a cidade. Antes de mudar de nome, Chennai chamava-se Madras. O suposto casamento religioso teria ocorrido no domingo passado e foi divulgado hoje pela Associated Press, que por sua vez diz ter extraído a história do jornal Hindustan Times.
O Hindustan Times, editado em Nova Déli, a cerca de 2000 quilômetros de Chennai (o site liveindia.com fala em 2095 km; o timeanddistance.com diz que são 1749 km), publicou na segunda-feira a primeira versão da notícia com informações da agência de notícias Press Trust of India. Nessa, o noivo é chamado de Selva Kumar. Hoje, o repórter GC Shekhar assinou uma nova reportagem, dessa vez assinada de Chennai, contando o mesmo caso e alterando o nome para P Selvakumar.
Para essa notícia questionável, de terceira mão, o iG publica título e até uma foto na capa que permaneceu no ar por um bom tempo nesta terça-feira, mais de 48 horas e milhares de quilômetros distante do ´evento´. A notícia remete o leitor para minúsculo texto interno. O sujeito, sobre quem não existem mais informações, teria casado com o animal por recomendação de um astrólogo, para afastar algum tipo de superstição ou como pagamento por já tê-la superado. Os princípios jornalísticos de relevância, proximidade e atualidade são ignorados na decisão de publicar a notícia agora. Há, porém, um certo bom humor, que é preciso levar em conta, como a dizer que nem tudo precisa ser assim levado tão a sério. Mas, se alguém levar a comédia ao pé da letra e for tentar verificar os dados oferecidos ao leitor, pode adentrar um labirinto típico dos contos de Jorge Luís Borges. A ver: o ´casamento` ocorreu em Manamadurai, que fica a 50 km, não 470, de Chennai, que é a capital da região de Tamil Nadu, uma das mais prósperas do subcontinente indiano. O iG afirma que o cão é sagrado, como outros animais na Índia, mas a notícia original diz apenas que Selva Kumar ou Selvakumar convenceu-se de ter sido vítima de uma maldição dos cachorros, que lhe causou um derrame e surdez em um ouvido. Isso porque ele teria torturado até a morte um casal de cães por tê-los visto cruzando, fazendo sexo. Tudo, a rigor, muito simples. Desde que ninguém pergunte o que de fato aconteceu.
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Otimismo e jornalismo (12/11/07)
A principal notícia do ano em todas as áreas talvez seja a crise provocada pela quebra do sistema de hipotecas nos Estados Unidos, seguida pela exposição, cada vez mais evidente, das fragilidades estruturais da economia americana, inclusive, do sistema bancário. O potencial histórico dessa turbulência pode levar a uma reorganização das disputas internacionais de poder entre os países. A posição relativa do Brasil e de outros países pode ser alterada. Junte-se a isso a suposta descoberta do grande campo de petróleo de Tupi na bacia de Santos, no qual, segundo noticia a Veja, pode haver uma quantidade de óleo quatro vezes mais do que o governo especula, segundo o presidente Lula teria afirmado durante um almoço na Petrobras. Diante disso, pode ser que o país viva uma inédita onda de otimismo e ufanismo, numa atitude de reversão do baixo astral experimentado nas últimas décadas ´perdidas´, em que o noticiário foi dominado por estagnação econômica, agravamento da desigualdade, da criminalidade e do tráfico, emigração, corrupção e desinteresse político. Frente a essa compreensível, mas ilusória, guinada em direção ao otimismo vai conquistar mais respeito quem investir em noticiário sóbrio, escorado nos fatos, pluralista, amparado em especialistas, cético e distanciado dos interesses políticos. É hora de investir na qualidade, pensando não apenas em conquistas apressadas, mas na construção de uma cultura jornalística, que deve crescer junto com o país, ou seja, injetando mais elementos complexos da realidade no debate nacional. Já estão a dizer que o Brasil tem magnatas do petróleo. Para que o jornalismo não comece a crer nisso, é preciso reafirmar os princípios de independência do poder, apartidarismo, eqüidistância e crítica. Decisões nacionais incorretas freqüentemente são também resultado de noticiário tecnicamente ruim e manipulado por interesses de partes.
O iG errou e já corrigiu, mas…
Merece registro a rapidez mostrada pelo iG na correção de erro na manchete do portal, cometido ontem de manhã. O equívoco foi grande, mas a correção foi transparente e também ligeira, só que faltou esclarecer que o erro foi publicado em local mais nobre: a manchete da homepage do portal.’