Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Mecanicismo político-midiático salva o senador

O tapete verde do Senado, na fatídica quarta-feira, 12/09, em que o senador Renan Calheiros (PMDB-AL) foi salvo no julgamento de parte da sua obra, porque, convenientemente, os senadores, com apoio tácito da grande mídia, deixaram de lado, mecanicamente, o todo dela, poderia merecer a frase de Balzac que, como repórter, percorre, em A menina dos olhos de ouro (L&PM), Paris e os parisienses, para compor um painel genial da cidade-luz: ‘O jornalista é uma reflexão em marcha, como o soldado na guerra.’ Depois da batalha, Renan posava de Bin Laden: tinha detonado as torres gêmeas do Congresso.

Repórteres e cinegrafistas para todos os lados, uma sensação de confronto, que foi se anuviando quando o blog do Noblat lançou, no calor das tensões, uma novidade no jornalismo brasileiro: o repórter secreto. Este estava no meio dos senadores, para dar as informações que estavam rolando na ridícula sessão secreta do Senado. Soube-se, então, que o senador Aloísio Mercadante(PT-SP) estava indócil. Armava, com seus colegas petistas, salvo o senador Eduardo Suplicy (PT-SP), a bancada da abstenção. O que os jornais diriam no dia seguinte? Repetiram o repórter secreto.

A correria foi geral. Sabendo que o espião do Noblat estava provocando estragos generalizados no front dos inimigos, a concorrência foi salva pela ira dos próprios parlamentares. Por que somente haveria a versão do repórter secreto do Noblat? A maioria dos senadores (e deputados, que obtiveram do STF autorização para entrar no recinto mal-cheiroso sob protesto do presidente da mesa, senador petista-acreano Tião Viana), transformaram-se, também, em 007s. O que fazer nos jornais diários diante de tal situação? Repetir no dia seguinte o que os blogs haviam dado com detalhes ao longo do dia anterior?

Circunstâncias mudam

À noite, os noticiários de TV foram fartos. Colocaram imagens em cima das informações dos blogs. Leitores e leitoras queriam primeiras páginas diferentes das manchetes que haviam sido dadas no calor dos acontecimentos, nos blogs, sites, rádios e televisões, espetacularizando o noticiário, papel que lhes cabe no primeiro momento. Eles fazem, hoje, o que faziam antes as edições extraordinárias, quando o fato era espetacular. O jornalismo on line detonou o corriqueiro que as edições matutinas e vespertinas destacavam. Não dá mais.

Estava em jogo o fato mais importante que compõe o espírito democrático: a relação ética entre o representante e o representado no Parlamento. Max Weber e sua ética sob o capitalismo não se apresentou. Ela se mostrou mortalmente atingida no conjunto da obra que veio ao ar durante mais de cem dias de crise e agonia do Senado. Compôs uma história com vários capítulos. Os senadores fizeram como faz a cobertura do jornalismo atual sobre os fatos econômicos: separam as partes do todo. Perceberam uma realidade esquartejada sem interrelação entre o todo e a parte e vice-versa. Deixaram o que não presta, mas que é o essencial, para lá. Os fatos positivos são ressaltados, os negativos, escondidos, como disse o ex-ministro Rúbens Ricúpero ao repórter Carlos Monfort.

A imprensa caiu na armadilha do mecanicismo político renaniano. Comportou-se, acriticamente em relação ao seccionamento da realidade. Repetiu o comportamento que adota relativamente aos fatos econômicos, quando dá peso absoluto ao lero-lero bancocrático dos neoliberais de que a inflação decorre do excesso de demanda, mal que se combate, indiscriminadamente, com juro alto. Em parte é verdade, mas as circunstâncias mudam. Não mudaram, agora, com o fato de que o aumento do consumo das massas miseráveis ajuda, também, a combater a alta dos preços e o elevado custo do dinheiro, impulsionando o PIB?

Correio Braziliense brilhou

Flexibilidade é o nome do jogo, como destaca o filósofo Tomio Kikuchi, em Estratégia. O resto é ideologia, que a mídia nacional engole como verdade. A sociedade esperava nas primeiras páginas da corajosa grande mídia no dia seguinte ao julgamento envergonhado dos senadores a vivacidade que estavam dizendo os editoriais. A sintonia com seus leitores. A denúncia do decoro ficou entre quatro paredes, não foi para a rua, escandalizando. Nada, a mídia caiu no conto do mecanicismo porque se tornou prisioneira da ideologia utilitarista-mecanicista. Precisaria de provas concretas para condenar a indecorosidade de Renan nas manchetes, desde o momento em que reconheceu que utilizava lobista de empreiteira para pagar pensão à jornalista Mônica Veloso, mãe de sua filha? Venceu o acanhamento, perdeu a ousadia. Os senadores já tiveram, com a ajuda decisiva da grande mídia, coragem de detonar um presidente da República, Fernando Collor. Renderam-se à covardia, convenientemente, negando-se a limpar sua própria casa, usando o ardil do falso entendimento da realidade parcial dos fatos, contando, para tanto, com colaboração inestimável da compreensão midiática. Imagine isso no Congresso norte-americano, francês, italiano, japonês? Impossível. No Japão, aliás, o primeiro-ministro caiu no dia em que Renan, por práticas semelhantes, se salvou.

As manchetes repetiram o óbvio, para que não interpretassem o sentimento popular: ‘Renan foi absolvido’. Bidu. Foi como se tivessem todos os jornais levados um soco no estômago. Imobilizaram-se diante do falso impacto que já tinha acontecido no dia anterior. Por que Renan foi absolvido? Palmas para o Correio Braziliense. Sintonizou-se com a sociedade: ‘Vergonha nacional’. O bordão de Boris Casoy emplacou no jornal dos herdeiros de Chatô. Não teria sido tal bordão que detonou o famoso âncora pelos bispos da Record? O CB fez o que não fizeram os jornais do Rio e de São Paulo, considerados escolas competentes, cujos ensinamentos se espraiaram pelo país afora: interpretar a alma popular nas manchetes, devidamente ancoradas nos fatos que permitiriam a ousadia conclusiva da queda do decoro renaniano. Na terça, 11, também, o Correio brilhou na primeira página: a ‘Última cartada’, no baralho do tarô, focalizando ‘O Enforcado’, bela ilustração do talentoso Kácio Pacheco. Ler e dependurar na parede. Na quinta, idem, o CB continuou jogando com a ira da sociedade: ‘O Brasil que ainda crê na ética protesta’. O resto, na primeira, uma água, como se a quarta tivesse sido um dia normal, e não excepcional.

A cantada de Negreiros

A repetição do fato velho demonstrou claramente que a grande imprensa está lerda, pelo menos na primeira página. Não só isso. A ousadia acabou. Perdeu para a agilidade do jornalismo on line que deu a notícia mais espetacular do caso Renan: o repórter José Negreiros adiantou, no blog do Noblat, que Renan faturaria. Arguto, esperto, louco por um furo, Negreiros, repórter-escritor, que brilha na economia e na política, correspondente internacional, editor de primeira, considerado irascível, dada sua propensão irresistível ao perfeccionismo no trabalho diário, temperado pela corrosiva ironia, viu o que ninguém ousou antever: o triunfo renaniano. Cantou-o com argumentos típicos do profissional preparado para a tarefa nas horas graves: momento alto do jornalismo informativo-analitico, característico dos mais experientes, cuja ausência tem sido sentida nas coberturas no Congresso. Aliás, para se informar bem do que acontece no Congresso, esqueça os jornalões: o Jornal do Senado e o Jornal da Câmara trazem tudo, sucinta e competentemente. Caberia à grande imprensa trabalhar reportagens do mundo congressual, mas… estamos esperando, sentados.

Enquanto a maioria embarcou no ‘já ganhou’, Negreiros trabalhou com os números de forma probabilística, ancorada nos interesses gordos que estão por trás das decisões. Captou a antecipação da vitória de Renan na declaração enigmática da senadora petista-catarinense Ideli Salvati, dando conta de que o PT não seria fiel de nenhuma balança. O experiente repórter não caiu na aparente fuga da senadora e dos seus colegas petistas, com destaque para o senador Aloísio Mercadante, tremendamente desgastado pela sua incompreensível abstenção auto-proclamada.

Ao contrário, Negreiros contou como possíveis os votos das principais cabeças do PT no plenário, dados os interesses superiores do Planalto, captados, por ele, na dica cifrada de Ideli. Configurou-se, afinal, sua perspicácia, diante da declaração do senador Mercadante de que teria optado pela abstenção, visto que não estaria suficientemente convencido de que o presidente do Senado teria cometido indecorosidade parlamentar, dada a falta de provas – como estava analisando a parte e não o todo, engoliram os ingênuos a monstruosidade mercadantina. Safadeza, destacou o senador Artur Virgílio (PSDB-AM). A aposta de Negreiros na vitória de Renan, ou na derrota do Senado, enquanto a boiada midiática embarcava nas afirmações que davam como certas a cassação do parlamentar alagoano, representou feito admirável.

Queimar dinheiro

Qual a lição? A grande mídia começou a perder a concorrência para os repórteres mais experientes, que estão preferindo vôo solo na emergência da tecnologia da informação, promotora da criatividade e da liberdade, sem os condicionamentos existentes dentro das empresas jornalísticas, que passaram a apostar no falso espetáculo da homogeneidade em meio à heterogeneidade. Os jornalões chegaram velhos, pesados e barrigudos às bancas, em matéria de primeira página. A vitrine fora dada no dia anterior pela TV e a cores. Para que comprar a mesma manchete no dia seguinte? Velharia. Murdoch agradece e pede passagem.

A rapidez do repórter secreto, a sagacidade do repórter José Negreiros e as manchetes do Correio Braziliense fizeram, sem dúvida, a diferença. Foram, sem dúvida, destaques da semana. Demonstraram que o furo torna-se arma do jornalismo on line, rapidíssimo, colocando no curé a mídia impressa. Esta, se quiser sobreviver, terá que mudar de tática, pois envelheceu, rapidamente, para dar a notícia em primeira mão. Terá que trabalhar o assunto. Uma dica? A fórmula imaginada pelo repórter Luiz Gutemberg, colocada em prática no semanário que comandou nos anos de 1980, José: FPA – Fato, Pesquisa e Análise. A abordagem simultânea da notícia em três atos. Se os jornais não cuidarem de dosar as suas edições com repórteres diferenciados na cobertura, mesclando experiências acumuladas, cairão, talvez, gostosamente, pois é o que certamente anseiam, no alçapão de Murdoch. O espírito de semanário insiste em se tornar diário.

Em tal contexto de banalização mecanicista da notícia, que forma mentes adestradas para analisar os fatos apenas em suas partes descoladas do todo da realidade em que se inserem de forma dialética, mesmo os repórteres mais experientes da grande mídia se mostram exaustos, acumulados de serviço. Têm que escrever para o jornal e alimentar os sites e as agências. São contratados para cumprir o grosso do trabalho e não para o trabalho apurado dos temas a que se quer dar prioridade nas coberturas quantitivas-qualitativas, e não meramente quantitativas. Os donos de jornais mostram não terem aprendido a lição de Marx de que capital é trabalho acumulado. Destroem, burramente, a acumulação de capital disponível em nome da quantidade, enquanto desdenham a qualidade, no ritmo da notícia on line. É coisa que nem doido faz: queimar dinheiro.

TV Pública, a diferença

Resultado: a qualidade saiu dos jornais e das revistas, para se abrigarem, cada vez mais, nos blogs. Quem melhor do que Luis Nassif para dar o recado do dia-a-dia da economia, sem as peias amordaçantes do pensamento bancocrático, às quais estão amarrados até os repórteres com anos de estrada, engolindo gato por lebre, na grande mídia, salvo honrosas exceções? Na cobertura econômica, a coisa está feia. Enquanto os próprios relatórios dos bancos centrais informam que as certezas acabaram em matéria de economia capitalista, os capitães da grande mídia e seus comentaristas treinados na ideologia utilitarista se apegam ao subjetivismo do livre mercado no qual sequer acreditam. Mentem para si mesmos. O destaque dos relatórios do BIS, Banco de Compensação Internacional, realçado por Delfim Netto em sua coluna na Folha de S. Paulo, na quarta-feira, 12/09, dando conta da ficção dos comentários eivados de certezas subjetivas em um mundo totalmente dominado pelas incertezas, no campo econômico e, consequentemente, político, é a senha geral que deveria servir aos repórteres para desconfiarem das próprias verdades que escrevem, ditadas pelos economistas adeptos da bancocracia neoliberal.

Diferença, também, fez a TV pública, que teve vitória parcial ao derrotar o voto secreto na Comissão de Ética e derrota na votação final em plenário, por estar, involuntariamente, ausente. No entanto, o jornalismo da TV Senado foi ágil, no tapete verde, colocando âncoras experientes na redação e repórteres à cata de entrevistas, depois que a sessão acabou e o tumulto se generalizou, como se as torres gêmeas, sob o impacto do bombardeio de Renan bin Laden, tivessem caído na cabeça de todos. O âncora Beto Almeida, no agito do corre-corre em busca de senadores para entrevistas, comandou bem a cobertura, distribuindo bolas, enquanto entre um passe e outro enfatizava os argumentos principais dos entrevistados, para melhor fixá-los: ‘A TV pública faz a diferença. Enquanto estamos fazendo a cobertura ao vivo, os outros canais abertos, que recebem verbas públicas dos bancos estatais, desdenham do público, para cuidar tão somente do privado, apresentando, nessa hora, Pato Donald e outros bichos semelhantes, capazes de dar urticária.’ Para Beto, o que está em jogo é o que Renan Calheiros, sob pressão da grande mídia, recusou fazer: ‘colocar em votação o veto à emenda 29, que detona a legislação de Vargas, para abrir espaço a uma nova acomodação entre capital e trabalho’. Ou seja, teria sido pego como boi de piranha. Se colocar em votação o assunto, teria a condescendência midiática? É esperar pra ver.

A influência junto à Receita

Os políticos que criaram uma relação dialética com o eleitor por meio das TVs Câmara e Senado se sentiram órfãos lá dentro da sessão secreta vergonhosa. Quem acreditará no argumento de que obedeceram à Constituição de 1988, que prevê voto secreto e sessão secreta para cassação de mandatos? Isso rolou antes de nascer a TV Senado. Depois desta, a Constituição tornou-se incompatível com o desejo popular, que se transformou em conquista democrática. Mais uma razão para a Constituinte exclusiva vir por aí, a fim de reformar a política, porque com esse pessoal atual seria sonho de noite de verão. Pelo menos, espera-se que jamais ocorra no Congresso a repetição da vergonha do dia 12, dadas as matérias em tramitação, agora, em ritmo acelerado, para acabar com o injustificável segredo parlamentar, algo já suprimido na Câmara dos Deputados. O Senado, que deveria dar o exemplo de mediador dos conflitos, transformou-se no gerador dos conflitos. Candidatou-se à auto-extinção e estimulou, com isso, as especulações em torno de terceiro mandato para o presidente Lula.

Enfim, é de se perguntar, por que Renan ganhou? Teria sido a mídia a derrotada na batalha? Faltou jornalismo? Pelo menos não foi possível ler uma matéria competente sobre a acusação contra Renan de que teria influído junto à Receita Federal e ao INSS favoravelmente à renegociação de débitos da fábrica de cerveja Schincariol, da ordem de R$ 100 milhões, em troca de negociação de fábrica de bebidas da família Calheiros, adquirida, superfaturadamente, por R$ 27 milhões. Seria possível a Receita, ocupada por funcionários de carreira, aceitar essa proposta? Teria havido algo dessa natureza na história da instituição? Sendo os funcionários da Receita concursados, altamente qualificados, competentes, obrigados a cumprirem o direito administrativo, que prevê penas elevadas para os transgressores em atos como esse, dificilmente a corporação deixaria passar caso tão escandaloso. Seria o mesmo que tentar abafar algo na Procuradoria Geral da República. Poderia ser comprado um procurador? Teriam outros 500 para ser comprados, mas, também, dispostos a enquadrar os transgressores. Teria havido outro caso desse naipe, para comparação? Qual?

Decoro parlamentar

Não houve nenhuma investigação jornalística para permitir pairasse no ar a irresponsabilidade possível, historicamente ancorada, da Receita Federal. Os próprios senadores, como Artur Virgílio, PSDB, destacaram que se trata de um abacaxi que deve ser transferido para a Câmara, visto que um dos acusados é deputado, irmão de Renan Calheiros. Incrível esse argumento: sinaliza fuga de responsabilidade ou medo do ridículo? O histórico realizado em forma de jornalismo honesto serviria de balizador crítico para a sociedade, nesse caso. Sem indicadores honestos, como diria, ironicamente Mário Henrique Simonsen, não é possível abalizar a realidade, sobre a qual passa predominar misticismos. A falta de jornalismo investigativo teria ou não contribuído para salvar Renan?

O fundamental, no entanto, foi a grande mídia cair no conto do vigário do mecanicismo político de isolar os fatos para tratá-los um a um, separadamente. Conveniência? Esquartejaram o assunto. Depois de ultrapassado o caso Renan-Mônica, viria o caso Renan-Schincariol, o caso Renan-João Lira e, finalmente, o caso Renan-Brito Lins etc. Há vários Renan ou um só Renan por trás dos casos vários?

O procurador-geral da República Antônio Fernando Souza, ao elaborar sua denúncia ao Supremo Tribunal Federal, que acolheu-a, pelo relatório do ministro Joaquim Barbosa, concluiu seu veredicto não por partes, mas pelo todo da obra dos mensaleiros, atuantes em forma de quadrilha, cujo chefe teria sido, segundo ele, o ex-ministro-deputado José Dirceu (PT-SP). A contradição do Senado, não suficientemente destacada pela grande mídia, foi tão gritante que agora seus integrantes querem juntar num bolo o total das denúncias que sobraram para apreciação de um só fato que, essencialmente, está sob o foco: o decoro parlamentar, mercadoria, ao que parece, tornada descartável, como pressuposto da relação do público com o privado. A mídia, inconscientemente, concordou com a separação dos fatos, pois, na prática, tornou-se prisioneira do mecanicismo econômico, agora, fazendo escola nos acontecimentos políticos. O geral deu lugar ao particular e o particular se tornou geral.

Acionistas midiáticos

Privilegiou-se o técnico sobre o político. Daí ter sido fundamental um técnico, que se transformou em político, para desatar o nó: o senador Francisco Dornelles (PPS-RJ), ex-secretário da Receita Federal no tempo da ditadura militar. Tecnificou o decoro, que, teoricamente, é intecnificável, ao destacar que se cassasse Renan antes de uma fiscalização e veredicto da Receita Federal seria possível chegar ao impasse: e se a Receita não confirmasse a denúncia? Pragmático, Dornelles quer ir adiante: ‘Agora é a vez da emenda 29.’

Vista a parte, debaixo do segredo de polichinelo, fora do foco e do fogo da discussão em plenário e deixado de lado o todo, que comporia o perfil e a obra do parlamentar alagoano, algo que se preferiu descartar, a vitória de Renan, como previu Negreiros, se consumou. O experiente repórter percebeu que o chefe dividiu para reinar. Deu certo. O presidente do Senado sabia com quem estava lidando e conhecia os argumentos dos quais lançariam mão seus correligionários. A alma dos políticos, assim como da grande mídia, não pode ser vista em sua totalidade, apenas, em suas partes, cuja podridão ficou temperada pelas tecnicalidades jurídicas.

Pra que escandalizar o todo na manchete do day after, se a mídia, sendo parte do jogo geral, poderia ser atingida, também? A Veja foi exposta em suas negociações com laranjas sendo utilizados para fazer negócio sujo. Renan confrontou seus pares, na sua fala de 30 minutos, deixando em silêncio seus possíveis algozes. Disse, entre outras coisas, que a senadora Heloísa Helena, talvez, como ele, não possa falar em sonegação, porque, também, teria sonegado. Explosão em plenário. Seria cassada por isso? Outros teriam feito algo semelhante ou não? Existem acionistas midiáticos, por exemplo, que, participando de grandes fundos de pensão, realizam grandes investimentos, por meio dos banqueiros, em diversos setores da economia, que precisam dos favores do governo, como destaca o deputado federal Ariosto Holanda (PS-CE). Poderiam se tornar alvos. Melhor não fazer jornalismo para valer.

Falsa seriedade

Pra que sair com argumentos morais na primeira página para avaliar o escândalo do Congresso brasileiro, que abastardou a lição de Montesquieu, se a moral da grande mídia, também, está abastardada? Conveniente para todos que a dialética dos acontecimentos não alcance os seus limites para não deixar despida a própria grande imprensa.

A dialética, como destacou Marx, é o azimute da burguesia. Ela foi arma adequada enquanto necessária para os burgueses derrotarem o rei e seu sistema monetário falso-equilibrista apoiado nas reservas em ouro e prata. Depois da emergência da economia monetária, em que a moeda é um sopro milagroso que o Estado dá em cima de um pedaço de papel pintado sem lastro para dinamizar os caminhos de ferro que dinamizam o real concreto em movimento (Hegel, citado por Schacht, o mago das finanças de Hitler), tornou-se perigoso, para a burguesia, continuar utilizando a dialética, a fim de banir a monarquia, visto que os burgueses, transformaram-se, ao chegarem ao poder, no próprio rei, preservando-o na Câmara Alta. Maneirismo político predominante desde então passou a ser a norma.

O movimento político-dialético em terra brasilis mostra que os três poderes montesquieunianos, na verdade, são quatro. O Congresso nacional é uma abstração. Não está nem para o estilo inglês, onde existem a Câmara Alta, dos lordes descartáveis, e a Câmara Baixa, de onde saem as leis e os primeiros-ministros, nem para o estilo norte-americano, em que o Congresso é uma articulação poderosa do Senado e da Câmara dos Representantes. As duas casas, aqui, como destaca o economista e cientista político, Paulo Timn, da UnB, são separadas e desarticuladas entre si, invariavelmente, se trombando. Apenas se encontram, em busca de grana, na comissão de orçamento e finanças, de onde saíram as grossas corrupções ao longo do período neo-republicano neoliberal. Executivo, Legislativo e Judiciário, na lição de Montesquieu, abastardaram-se no Brasil porque o Congresso, sendo uma abstração, abriga, na prática, um bi-poder desarticulado entre si.

A imprensa trata o Congresso como ente concreto, e não totalmente abstrato. Compõe com ele a subjetividade na ação, de aceitar, pacificamente, como aceita no plano econômico, a visão parcial dos fatos. Nesse ponto, os senadores, que com os deputados, formam a teoria política abastardada do filósofo francês, sabem muito bem manejar a imprensa, para que ela, nas primeiras páginas, nos dias seguintes às horas dramáticas, trate os dramalhões com falsa seriedade, e não como piada.

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Jornalista, Brasília, DF