Em 17 de abril, uma reportagem do Fantástico, da Rede Globo, reuniu 15 médicos do Incor que 20 anos antes haviam atendido Tancredo Neves na tentativa desesperada de evitar sua morte. Este Observatório registrou o mal-estar da família do ex-presidente diante das revelações e publicou críticas ao comportamento dos médicos feitas por uma jornalista com longa experiência na área. Mas abrigou um comentário positivo sobre a reportagem:
‘Aceitas essas sérias ressalvas, ainda assim a reportagem da TV Globo é relevante, principalmente pela conclusão final de que, à luz de avanços posteriores da medicina, sabe-se agora que o presidente eleito já chegara ao Hospital de Base de Brasília (40 dias antes) com chances muito restritas de escapar da morte.’ (ver remissão abaixo)
Simultaneamente, foi procurado por telefone e correio eletrônico um médico que, no último dia da agonia de Tancredo, 20 de abril de 1984, o examinou e concluiu que nada mais poderia ser feito para salvá-lo. É o Dr. Warren M. Zapol, hoje chefe da Anestesia do Massachusetts General Hospital, ligado à Escola de Medicina de Harvard.
O Dr. Zapol recebeu a seguinte pergunta sobre ética médica:
‘Do seu ponto de vista, os médicos deveriam falar à televisão sobre algo considerado um segredo do paciente sem pedir permissão à família (já que a pessoa tinha morrido)?’
Houve duas respostas.
Numa primeira mensagem, ainda em abril, Zapol escreveu:
‘Presumivelmente, ao menos nos Estados Unidos, a maior parte das pessoas diria que um médico não deveria fazer revelações sem permissão.
Eu realmente não sei se é possível abrir exceção para figuras públicas quando o público tem necessidade de ser informado.
É difícil imaginar que, tanto tempo após sua morte (foi há 20 anos, certo?), tenha havido necessidade premente de fazê-lo. Posso remeter a pergunta a Bob Truog, que é muito mais versado do que eu em ética médica?’
Evidentemente, a resposta foi positiva.
Nem com permissão da família
E a opinião de Truog chegou em 24 de maio.
Robert D. Truog é professor de Anestesia e Ética Médica (Pediatria) na Escola de Medicina de Harvard e chefe da Divisão de Medicina Intensiva do Hospital de Crianças de Boston.
Eis sua mensagem, em tradução livre:
‘A questão desencadeou uma boa discussão entre mim e Allan Brandt [professor de História da Medicina em Harvard]. Ele lembrou que anos atrás houve um debate na Kennedy School [escola de administração pública de Harvard] após a investigação minuciosa que [o senador] Paul Tsongas sofreu quando concorria [à indicação do Partido Democrata para concorrer à presidência da República em 1992, ganha, como se sabe, por Bill Clinton], por conta de sua história de câncer, e para saber se ele tinha a obrigação de permitir a divulgação de sua ficha de Dana-Farber [centro de tratamento de câncer]. Há também muito livros recentes sobre a saúde (e falta de) dos presidentes durante seus mandatos.
‘Parece-me que existe uma diferença importante entre o direito do público de ter informação médica acurada sobre um pretendente ou ocupante de cargo público e informação sobre alguém após encerrada sua função pública. Se uma pessoa não mais ocupa cargo público, não consigo ver nenhum fundamento lógico em considerar sua informação médica como menos privada do que a sua ou a minha. Entretanto, penso que há uma visão corrente de que ‘vidas públicas’ têm pretensões mais reduzidas à privacidade do que as que temos todos os demais.
‘Mas outra volta na questão é o papel dos médicos em relação a seus pacientes ou ex-pacientes. Não consigo pensar em nenhum caso no qual um médico teria direito a abrir informação médica sobre um paciente sem permissão da pessoa, mesmo que o paciente fosse um candidato a alto cargo público, ou estivesse no exercício dele. Penso que caberia ao político decidir dar ou não permissão para a divulgação da informação.
‘Finalmente, o que dizer de depois da morte do político? Pode o médico divulgar informação previamente confidencial se os parentes vivos do político dão seu consentimento? Ou se exige do médico que leve essa informação para o túmulo (a menos, é claro, que o político antes de morrer tenha deixado instruções dando permissão para que a informação seja divulgada após a morte)?
‘Minha opinião – nada mais do que isso – é que os médicos que falaram sobre a morte do presidente Tancredo Neves certamente não deveriam tê-lo feito sem permissão da família, e possivelmente nem com permissão.’