O menino João Hélio Fernandes Vieites – que em um país decente estaria neste momento entre nós, brincando e desfrutando de suas férias de verão – teve na última semana um destino duplamente triste e revoltante: primeiro, foi mais uma vítima inocente do estado consolidado de anomia que impera no Rio de Janeiro em um crime emblemático por sua barbárie chocante e sem paralelos. Em seguida, não bastasse isso, sua memória foi imediatamente convertida em outdoor de uma agenda política conservadora, de retórica populista, cujos projetos só podem encontrar alguma simpatia precisamente perante uma população emocionalmente desequilibrada pelo medo.
É simplesmente vergonhosa a maneira pela qual os maiores e mais poderosos veículos de mídia do país vêm se utilizando da tragédia ocorrida, de forma vil e manipuladora, a fim de atrair simpatia para ‘soluções mirabolantes’ que se chocam frontalmente com os princípios do ordenamento jurídico pátrio, sempre evitando sistematicamente os temas e questões que realmente são cruciais nesta questão.
O ‘endurecimento da sociedade’
Tal conduta não representa novidade alguma, sendo essencialmente similar, por exemplo, ao que fez nos Estados Unidos o presidente Bush, que conseguiu legalizar a tortura sistemática de estrangeiros ‘suspeitos’ – tudo com a benção de seus eleitores. E isso em uma nação que é historicamente o berço dos conceitos modernos de democracia ocidental e liberdades individuais. É o poder do medo, esse ancestral sentimento primitivo que tem um inigualável potencial de extrair o que de mais sombrio existe em todos nós.
Até onde a sociedade civil brasileira está disposta a ceder à retórica do ‘endurecimento da sociedade’ que adentra o debate como um troglodita e se coloca no lugar das questões que realmente importam? Devemos trancafiar todos os jovens? Fechar os bares e casas noturnas? Impor o toque de recolher? Fazer com que os marginalizados já nasçam atrás das grades? Reformar a Constituição para eliminar as progressões de pena, reduzir a maioridade penal e impor prisões de caráter cruel ou perpétuo? Passar o governo para um general-presidente e dar a ele poderes ilimitados?
O que a realidade impõe
O problema da violência endêmica e descontrolada que assola o Brasil possui dois pilares de naturezas distintas: um é socioeconômico, o outro é administrativo. É socioeconômico porque os jovens latrocidas, que constituem as fileiras da criminalidade urbana, são invariavelmente frutos da explosiva combinação de miséria econômica, núcleo familiar ausente ou opressivo, violência infantil, ausência de orientação pedagógica em seu meio, falta de perspectivas de futuro, assédio de narcotraficantes e infância vivida em um ambiente onde o ilícito é onipresente. Tudo isso, é bom lembrar, debaixo do indiferente nariz do Estado Democrático de Direito.
É administrativo porque nenhum ‘canetaço’ (cujo símbolo é o desnorteado senso comum de que ‘a lei tem que mudar’) tem o poder de fazer com que surjam mais policiais nas ruas, mais viaturas, mais serviços de inteligência e mais e melhores presídios. A única resposta no campo repressivo para tudo isso é pela via administrativa e envolve o comprometimento, no orçamento público, da aplicação de recursos financeiros em quantia suficiente para que a estrutura policial e penal do país seja compatível com as necessidades que a realidade impõe.
A retórica inconstitucional
Ocorre que discutir a questão em seus pontos reais – socioeconômico e administrativo – implicaria necessariamente em repensar o rumo para o qual os poderosos deste país conduzem nosso futuro. Implicaria na rejeição in limine do dogma da ‘falta de verbas públicas’ nesta nação de PIB imenso e tributos exorbitantes, cujo povo sustenta uma imensa classe de políticos e correlatos a custos astronômicos. Implicaria na investigação dos ‘ralos’ pelos quais o dinheiro público desaparece. Implicaria na análise crítica da indiferença dos governantes, eternamente habituados a verem o marginalizado como um problema apenas no dia em que ele aparece com uma arma na mão. Implicaria, enfim, em fazer efetivo uso do poder popular, exigindo-se a mudança efetiva do status quo.
Desnecessário frisar que a iniciativa para esta mudança não vai partir dos beneficiários diretos do atual estado de coisas. Tampouco será fomentada por seus veículos de comunicação subordinados, que continuarão investindo nos debates postiços habituais, cujas conseqüências invariavelmente virão a aumentar ainda mais o fosso que separa o povo de seus supostos representantes. Aí se incluem as estéreis discussões de cunho jurídico, as medidas de tolerância zero, as reduções pontuais das liberdades individuais e a retórica inconstitucional do ‘isolar o câncer’. Enfim, tudo aquilo que é supérfluo e inútil para a solução do problema. E na seqüência tem o Big Brother, porque afinal ninguém é de ferro.
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Advogado, Novo Hamburgo, RS