Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Medo do fascismo islâmico?

A História sempre nos traz lições, é claro. Uma delas é a contundente frase do decano dos historiadores ainda vivo – e, nesta última semana, entrevistado pela Folha –, o mais que lúcido e na contramão da maioria se declarando ainda marxista Eric Hobsbawn, para quem o século 20 foi o mais curto de todos – o ‘século dos extremos’, pois considera o mesmo da Revolução soviética de outubro à queda do Muro de Berlim. Não deixa de ser uma visão muito interessante e particular do grande intelectual britânico, mas que deixou de incluir algo muito importante acontecido no século passado e que é justamente o alfa e o ômega do atual (até o momento, por enquanto) fundamentalismo islâmico.

Parece que os terroristas, em nome do Islã, vieram ao mundo no atentado do 11 de setembro; e o mundo descobre que na maioria dos países árabes há pencas de pessoas que seguem as linhas mais extremadas do islamismo, criando o clima de terror desejado pelos perpetradores e levando mesmo uma nação, os EUA, com todo seu poderio militar e econômico, a sofrer sérios reveses, a ser alvo permanente dos radicais islâmicos, aproveitando-se de um governante fraco e eleito de forma duvidosa, George W. Bush, a dar espaço aos delírios militaristas de seus assessores mais próximos, como Dick Cheney e Donald Rumsfeld, rasgando toda sua tradição de defesa dos direitos civis e cometendo toda sorte de atrocidades, em nome da segurança nacional.

Vários outros países, em especial na Europa, passaram a seguir alguma coisa dessa linha. Quando já se havia decretado o ‘fim da História’, como afirmou Fukuyama, da Universidade John Hopkins, um novo inimigo, espalhado e invisível, passa a atemorizar o Ocidente. Mas a imprensa, ao redor do mundo, e até nos EUA, passa a ser branda com os islamitas, atacando os Estados Unidos e Israel – apontados como a causa das reações árabes – e explicando as coisas com base na pobreza e falta de perspectivas dos moradores de países islâmicos.

Wahabitas e salafitas

Há falhas de conduta moral e militar graves nos EUA e em Israel, não há como duvidar, mas será que só a existência do Estado sionista explicaria a ira dos árabes? E na hipótese improvável de Israel realmente deixar de existir, palestinos e demais muçulmanos entrariam em processo de paz com o resto do mundo?

Parece muito pouco provável que as coisas sejam assim, mas escrever a favor de Israel e dos norte-americanos parece mais que politicamente incorreto. Seria como defender o Chile sob Pinochet, a guerra do Vietnã… A imprensa, mesmo a norte-americana, critica o governo Bush (com razão, aliás), mas não vai atrás das raízes da questão.Mas eis que algo sai das sombras, quase inesperadamente: um belo artigo chamado ‘Bárbaros como Bush’, no Monde Diplomatique, o Diplô.

O artigo centra suas atenções no racismo em relação à situação em Darfur, no Sudão, como a comunidade internacional deixou as coisas de lado para uma situação de claro genocídio, e aponta lições do passado para entender o presente, sem receio. O artigo mostra claramente que há um fascismo islâmico, que pretende estender seus princípios não apenas a todo o mundo árabe, mas além dele, com pretensões mundiais, e ataca o cerne da questão, que é o wahabismo, os salafitas, demonstrando como as coisas chegaram a esse ponto. Sem medo e didaticamente. Parabéns ao Diplô e alguns acréscimos para quem quiser entender essa situação.

Anti-semita, não apenas anti-israelense

O artigo enfatiza que o racismo árabe nunca existiu antes na História e essa é uma lembrança muito importante. O mundo árabe, no passado, trouxe avanços altamente significativos para a civilização, das artes à ciência, incluindo a medicina. E não havia discriminação entre os muçulmanos em relação às demais religiões monoteístas; eles não perseguiam cristãos e judeus.

O que aconteceu, então, para ser declarada guerra ao Ocidente e às religiões co-irmãs? Basta ler um pouco.

O islamismo ortodoxo, com visões religiosas extremadas, existe há tempos, mas esse viés político é bem mais recente. A resposta é o tafquirismo, verdadeiro responsável pelo comportamento terrorista da al-Qaida, do Hamas, dos muçulmanos na Argélia e no Sudão e daí por diante. Não custa lembrar que o mufti de Jerusalém decretou morte aos judeus e se aliou aos nazistas, chegando mesmo a ser recebido por Hitler em Berlim. E vários criminosos de guerra nazistas se refugiaram no Oriente Médio após o término do conflito.

As coisas seriam bem mais recentes, talvez na casa dos trinta anos, em termos mundiais: a revolução islâmica no Irã foi saudada como vitória democrática contra o regime despótico do xá Reza Pahlevi, Khomeini foi alçado à categoria dos grandes líderes mundiais e incensado pela esquerda, que apoiou integralmente a revolução. Mas não levou um ano para Khomeini e sua Guarda Revolucionária eliminarem os esquerdistas e voltarem suas baterias contra os sionistas e o ‘Grande Satã’, como denominaram os Estados Unidos da América do Norte. E mesmo com o discurso altamente explosivo de Ahaminejad, o presidente iraniano que julga não ter havido o Holocausto, não tem medo em tomar atitudes anti-semitas, e não apenas anti-israelenses, e demonstrar seu apetite militar e nuclear, poucos se levantam contra o mesmo. Talvez até para não ficar ao lado de quem defenda Bush, mas esse tipo de situação lembra muito o comportamento de intelectuais e da imprensa quando Hitler chegou democraticamente a chanceler da Alemanha – o restante da História é bem conhecido.

A guinada de Bin Laden

Autores muçulmanos bem postados intelectualmente situam a questão no século 18, quando teria ocorrido uma ‘heresia no Islã’: a criação do movimento salafita por Muhhamad Abd Al-Wahab, na Arábia Saudita. Os wahabitas chegaram ao poder em 1932 na Arábia Saudita, com o início da dinastia com o rei Mohamed Ibn-Saud (de onde vem o ‘saudita’ da Arábia). Não por acaso, foi nessa época também que apareceu o primeiro movimento fundamentalista islâmico, a Fraternidade Muçulmana, no Egito, que até hoje é preocupação do governo atual – foram eles os responsáveis pelo assassinato de Anuar Sadat, sem deixar de questionar não ser o Egito uma democracia. E esses interpretavam o Corão de um modo todo especial, com o salafismo, que é a crença dos integrantes da al-Qaida. O Paquistão forneceu a logística, as armas, a organização das escolas islâmicas (madrassas) e os campos de treinamento militar para os militantes e os Estados Unidos deram sua aprovação e participaram do planejamento da operação.

Muitos dos mujahiddin afegãos e dos militantes internacionais que lutaram contra os russos (como o próprio Bin Laden e muitos seguidores da al-Qaida) foram formados e treinados naquela época, com a ideologia salafi. A criatura acabou virando-se contra o criador e para os EUA e seus aliados o movimento transformou-se num perigosíssimo sistema fora de controle.

Ironicamente, os EUA apoiaram os mujahiddin contra a invasão soviética do Afeganistão, mas que se virou logo contra o país. Afinal, Bin Laden foi um dos expoentes dessa luta de resistência à então URSS, mas logo virou suas baterias contra quem o financiou e se aliou aos talibãs afegãos. E os próprios norte-americanos, pelo visto, ignoraram os perigos, mesmo com o primeiro atentado ao World Trade Center, em 1993.

A fatwa contra Rushdie

Bósnia, Albânia, Kosovo, Chechênia, Daguestão e Caxemira são apenas exemplos do extremismo salafita, da internacionalização do movimento. E aqui na América do Sul parece que ninguém se preocupa muito com a aproximação da Venezuela e da Bolívia com o regime fascista iraniano. Aliás, os jornalistas em geral e gente que ainda se classifica como de direita ou esquerda ‘defendem’ o Irã: há exemplo mais nítido do fascismo do século 20 nos dias de hoje?

O wahabismo surgiu como uma tentativa de modernizar o Islã: contudo, seu radicalismo retrógrado levou à criação do tafquirismo, que passou a negar todo o passado de interpretação do Corão e dos princípios muçulmanos, interpretando o Corão literalmente, da maneira que melhor lhes parecesse. Um pequeno conselho: ler os livros do Nobel de Literatura V.S. Naipaul, que viajou a países islâmicos pouco após a revolução do Irã e, mais recentemente, fez contundentes observações e críticas.

Uma das mais interessantes é a ‘democratização’ da fatwa: essas são ordens (decretos) emanadas de líderes religiosos para os muçulmanos, que passaram a poder ser determinadas por qualquer um. O caso do escritor Salman Rushdie, condenado por uma fatwa do próprio Khomeini à morte, coloca ainda hoje em risco a vida do mesmo e mesmo tendo sido anulada por aitolás iranianos após a morte de Khomeini, muitos interpretam que apenas o mesmo poderia eliminar sua própria ordem – como é relativamente difícil ele retornar do paraíso para tomar tal atitude, consideram ainda em vigor a ordem de acabar com a vida de Rushdie… Foi um desses éditos proclamados por alguém que não é líder religioso – Osama bin Laden – que ordenou a morte de judeus e norte-americanos e declarou a guerra santa, a jidah, ao Ocidente…

Uma lição clara

Os salafitas são também violentamente contrários à arte religiosa (por isso, os talibãs destruíram as gigantescas estátuas de Buda de Bamiyan, e os salafis sauditas, vários edifícios sagrados da história do Islã), à mística, à filosofia e à teologia, aos direitos da mulher, à liberdade religiosa e à tolerância e, mais em geral, a todas as formas de cultura, civilização e pensamento.

Os tafquiristas vão mais longe: eles ainda se arrogam o direito de decretar que outros muçulmanos são apóstatas (tafkiri, em árabe, de onde vem o nome do movimento) porque discordam deles, o que lhes dá o direito de matá-los; rejeitam todas as formas de autoridade política a não ser sua própria, vivem em constante jihad (guerra santa) contra todos aqueles que não os apóiam (inclusive os demais muçulmanos) e, finalmente, não aceitam limitação alguma quanto aos alvos de suas ações violentas (por isso a al-Qaida visa atingir vítimas civis e o GIA argelino reivindica sem nenhum constrangimento o massacre de mulheres e crianças).

Contrariamente a qualquer religião revelada, incluindo o próprio Islã, o tafquirismo incentiva o suicídio, e promete o Paraíso àqueles que se matam carregando junto vítimas indefesas, mesmo estes tendo cometido todos os pecados possíveis.

Acredito não ser necessário ir mais longe nas considerações: há um perigo real, os riquíssimos sauditas que propagam tais idéias acabam por ser aliados dos EUA, como o Paquistão, numa dessas absurdas situações que a História nos reserva e ninguém no mundo pode se julgar a salvo do julgamento de um extremista destes: até os atentados contra a AMIA na Argentina foram atribuídos a gente ligada ao Hizbollah que habita a Tríplice Fronteira.

Que mais artigos como o do Monde Diplomatique apareçam, que se abra o debate (sem o viés igualmente fundamentalista de Bush e seguidores), pois de todos nós depende a paz mundial, não mais apenas dos líderes formais: essa é uma lição clara que os salafitas deixaram para todos.

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Médico, São Paulo, SP