Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Melhor não esquecer a desproporção

Além dos jogos e das arbitragens da Copa do Mundo, aqui no Brasil outro assunto habita as rodas de discussão: a relação entre o técnico Dunga e a imprensa. A situação chegou a tal ponto que as discordâncias, regadas a ódio, são publicamente assumidas por ambas as partes. Correndo o risco de terem seus respectivos compromissos profissionais prejudicados por tais atitudes, ainda assim nenhum dos lados ‘baixa a guarda’.

Se o ditado afirma que ‘dois bicudos não se beijam’, ele se aplica perfeitamente a Dunga e à imprensa. Com a diferença que o técnico seria um pequeno beija-flor e a gama de veículos de comunicação cobrindo a Seleção, um tucano misturado com gavião.

Antes de entrar na polêmica atual, uma retrospectiva. Em nosso país, apaixonado por futebol, é comum escolhermos um único culpado pelas derrotas da Seleção em Copas do Mundo. Foi assim com Barbosa em 1950, Cerezo em 1982, Zico em 1986, Roberto Carlos em 2006… Nesse momento, o detalhe que o esporte é coletivo é solenemente deixado de lado.

Desabafo com a imprensa

O fiasco da Copa de 90, na Itália, com o Brasil apresentando uma equipe desunida, em briga com o patrocinador e jogando um futebol feio e nada confiável, foi colocado sobre os ombros de apenas um jogador. Foi a chamada ‘Era Dunga’. Mas chamada por quem, cara pálida? Se existe na sociedade brasileira um messianismo latente (desde os tempos de Getúlio Vargas), também ocorre a eleição automática do Judas Iscariotes da vez. No entanto, o consenso só se solidifica e permanece através dos tempos devido à massificação da imprensa, que é diária, quase onipresente e que raramente admite seus erros e excessos.

Não se sabe quem inventou a expressão ‘Era Dunga’. Mas desde então ela é sintomaticamente repetida pela cobertura esportiva, colaborando mais uma vez para estigmatizar um jogador por toda a vida. Ninguém comenta que Barbosa foi um dos melhores goleiros que o futebol brasileiro já teve, mas todos têm na ponta da língua o discurso para culpá-lo pelo Maracanazzo. Dunga não foi craque como Barbosa, mas nem ele nem ninguém merece ser marcado por um fracasso que foi, não se esqueçam, coletivo: da presidência da CBF ao terceiro goleiro (Já dá pra imaginar onde nasceu o, digamos, desprezo de Dunga pela imprensa esportiva, certo?).

Eis que Dunga ressurge como capitão do tetra em 94, levanta a taça e, diante de todo o mundo, desabafa contra a imprensa: ‘Fotografem essa porra! Fotografem essa porra!’ Para todos os efeitos, ali estava automaticamente suspensa a Era Dunga – ou, ao menos, ela deveria ser atualizada com o desfecho vitorioso.

O corte nas ‘exclusivas’ da Globo

Mas Dunga agora reaparece como técnico da Seleção e, além de assumir que busca o futebol de resultados, ganha carta branca da CBF pra trazer de volta a seriedade e o comprometimento dos jogadores com a Seleção. (O fato da imprensa não ter feito críticas às farras da Copa de 2006 e depois espinafrar os jogadores que não classificaram o Brasil é mero detalhe. Ah, e também engrossaram o coro do comprometimento.)

E Dunga vai obtendo os seus resultados, encampando a máxima de que os fins justificam os meios. Ganha a Copa América, a Copa das Confederações, vence grandes seleções jogando bem, classifica o Brasil para a Copa do Mundo. Para isso, adota a metodologia do ‘grupo fechado’ e, claro, não dá a mínima para a imprensa.

Pelo contrário, comete até o pecado mortal de cercear liberdades da Rede Globo em suas reportagens exclusivas com os atletas, a despeito da programação da comissão técnica. Aí começam as primeiras ondas de ‘Fora Dunga’, que trouxe episódios ridículos. A CBF, como é de praxe, fez que não era com ela e deixou o esquentado técnico como um ótimo para-raio.

A demonização da vida pessoal

Diante disso, Dunga poderia simplesmente tocar seu trabalho e não se estressar muito com a chiadeira da imprensa. Mas, não: passou a ralhar, rebater, xingar, fechar treinos, restringir o acesso. O direito de tocar seu trabalho do jeito que decidir (a despeito de concordarmos ou não) passava a ser questionado em virtude de seu mau humor com os jornalistas.

E assim vai ser até um dos lados ceder ou mudar o disco. Dunga não esquece o que a imprensa fez com ele e o filme da ‘Era Dunga’ volta a seu cotidiano, renovando o rancor e cegando-o às possíveis críticas que possam ajudá-lo. A imprensa, por sua vez, elege o mau humor do técnico como um grave problema nacional, mas nada faz para trabalhar de outra maneira diante das dificuldades apresentadas e não reflete se está exagerando ao insistir na chiadeira.

Mas não podemos esquecer a desproporção: Dunga é um só – e é uma pessoa identificável. A imprensa é multifacetada, plural e não se personifica em ninguém. Logo, é muito mais fácil para a torcida saber em quem tacar pedras quando tiver vontade.

Dunga precisa repensar se é a melhor estratégia comprar briga a torto e a direito. E a imprensa não pode se esquecer que sua contribuição para a demonização massificada pode ser determinante para a vida pessoal dos envolvidos. Estão aí os casos da Escola Base, Wilson Simonal e tantos outros para comprovar.

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Jornalista, Rio de Janeiro, RJ