‘Eram 2h30 da manhã em Lisboa e 5h30 em Bagdá. Como se imaginava que a guerra iria começar, a RTP (Rádio Televisão Portuguesa) abriu uma exceção em sua programação e naquela noite exibiu um programa ao vivo em estúdio sobre a guerra. Tudo já havia sido passado, todos os apresentadores e jornalistas tinham falado e várias vezes tinham entrado ao vivo com Bagdá, mas nada ocorria. O pessoal estava esgotado e todos queriam dormir. Decidiram por encerrar o programa e me avisaram. Então, desconectamos os cabos e, quando sentamos, aconteceu como num filme: caiu a primeira bomba. Foi difícil convencer Lisboa a reatar a ligação com Bagdá. Por acaso, o programa ainda estava no ar, porque se já tivesse parado e retomado a programação normal, eu acho que não teria sido o primeiro a transmitir o início da guerra’.
Carlos Fino, agora assessor de imprensa na embaixada portuguesa no Brasil, era correspondente no Iraque da RTP e deu o furo mundial do início da guerra. ‘Me fizeram esperar quatro minutos para colocar no ar. Eu os chamei dos nomes todos. Nosso repórter está sendo atacado, mas primeiro os comerciais. É um pouco isso que aconteceu’, declara Fino em entrevista coletiva realizada no último sábado, 13/10, pelo VI Curso de Informação Sobre Jornalismo em Situação de Conflito Armado.
‘Nós somos uma profissão de fronteira, entre a propaganda e a informação’, diz o ex-repórter da RTP. Enquanto a atividade jornalística, em princípio, é de serviço público, o repórter atua num meio que é determinado pelo mercado e pelas regras do mercado, e as empresas para as quais se trabalha visam aos lucros.
Compromisso necessário
Outra ambigüidade essencial do jornalismo é o que Fino chama de situação ‘esquizofrênica’, pois ao mesmo tempo em que se cultiva a fonte, para conseguir publicar a matéria, é preciso trair essa mesma fonte.
O jornalista explica que em situações de guerra essas características se acentuam, pois ‘a guerra abre as portas do inferno em que tudo é possível e tudo é permissível’.
Além disso, a informação tornou-se um elemento da guerra. ‘Ela é o próprio objeto, pois sempre que há um conflito, cada uma das partes tenta utilizar a mídia dentro dos seus próprios interesses: esconder o que não convém, salientar o que é conveniente para seu próprio ponto de vista e até desinformar.’
Fino acrescenta que, quando há uma guerra, há uma batalha civil de interesses e o perigo consiste em os jornalistas serem tratados como mercenários disponíveis para serem recrutados. Por isso, o repórter tem que cuidar para não se deixar manipular nem ser conduzido por esse jogo.
Ao contrário do que comumente se acredita, para estar no local da guerra, segundo Carlos Fino, o jornalista tem que se ligar a um dos lados do conflito. ‘Eu tinha um compromisso com o regime do Saddam, pois sem isso eu não poderia estar em Bagdá.’ E, sendo mais enfático, diz: ‘Os que tentaram agir de forma totalmente autônoma e independente foram rapidamente eliminados.’
Hotel bombardeado
Os jornalistas têm que refletir sobre o tipo de compromisso que irão aceitar, pois apesar das limitações, ‘é preciso ter repórteres no local para dar as sensações e o estado de espírito; não se pode reportar sem ali estar e nada substitui o papel do repórter no local’. E, se é necessário pagar um preço para estar presente, Fino não titubeia: ‘Vale a pena pagar.’
Apesar de estar em Moscou e de presenciar o colapso do Leste Europeu com o fim da URSS, de cobrir a guerra do Golfo, os conflitos na Palestina e a guerra contra o Iraque, Carlos Fino não se considera um repórter de guerra. ‘Sou um pouco repórter de guerra acidental, embora esse acidental tenha se tornado o essencial do meu perfil’, explica.
Ele conta que mergulhou de cabeça em algo totalmente desconhecido. ‘Hoje, retrospectivamente, eu considero ideal que os jornalistas que vão para esses cenários se preparem para aquilo que vão enfrentar, como conhecer as convenções internacionais, ter noções de primeiros socorros, de sobrevivência e direito humanitário’, resume.
Os riscos de se trabalhar em uma guerra são enormes, inclusive há perigo dentro dos hotéis, ao contrário do que muitas pessoas acreditam. ‘Eu acho que isso é uma caricatura que não leva em conta os perigos mesmo, às vezes, de estar dentro do hotel, como o Palestine, em Bagdá, que hospedava diversos jornalistas e foi alvo de ataques norte-americanos.’ Foi desse mesmo hotel que Fino deu o furo mundial do início da guerra, mostrando que esses não são lugares seguros nem afastados da notícia.
Enquadrar e explicar
Há muito tempo jornalistas são acusados de ficar no hotel, longe do front e das fontes, deduzindo e escrevendo matérias, mas Fino desmistifica tais acusações com sua própria história e enfatiza: ‘Não só é injusto, como é inverídico.’ Numa situação de conflito armado não há uma regra comportamental, diz o jornalista. ‘Há quem fique no hotel e pode lhe acontecer algo duro, e há quem arrisque mais e não lhe ocorre nada.’
Para fazer a diferença numa cobertura, explica Fino, é necessário que o jornalista estude para estar bem informado. Também se deve cumprir o conjunto de preceitos que, em princípio, garantem o não fugir dos fatos: ‘Ser mais objetivo e eqüidistante, dois pontos possíveis dentro de limites, como o fato de a objetividade estar vinculada a uma subjetividade e o fato de o jornalista não reportar de forma neutra’, esclarece.
O repórter tem que reconhecer a realidade que vai noticiar o mais profundamente possível, pois as ‘novas tecnologias, dão ao jornalista a possibilidade de ser chamado para uma transmissão ao vivo, em tempo real, e ou você sabe do que vai falar, ou praticamente esgota aquilo que quer dizer’, pondera o ex-repórter.
Assim, com base nas observações do entrevistado, conclui-se que o papel do jornalista não se limita a reportar o que transcorre no dia-a-dia. ‘Ele tem que saber o suficiente para dar um enquadramento e uma explicação para aquilo que está ocorrendo, sem ser mero relator dos fatos que acontecem’, explica Carlos Fino.
******
Estudante de jornalismo