Foi numa terça-feira, 29 de novembro, que um fato meio inusitado lembrou um filme. O filme em questão é The Day of the Locust (O dia do gafanhoto), produção de 1974 dirigida por John Schlesinger. O fato foi a agressão ao deputado José Dirceu nas dependências da Câmara dos Deputados, em Brasília. Um indivíduo de cabelos brancos, com uma bengala, bate no deputado duas vezes, com ampla cobertura da imprensa. No dia seguinte, quarta-feira, numa sessão da Câmara que invadiu a madrugada de quinta-feira, Dirceu é cassado de seu mandado de deputado federal. Nos dias que se seguem à cassação, em vários lugares do Brasil, pessoas, entidades e partidos aclamam a atitude da pessoa que agrediu Dirceu como atitude meritória e representativa dos brasileiros. Em suma, uma agressão a um político. Um deputado, independentemente de sua ideologia, é atacado na Câmara e essa ação é considerada normal e ‘abençoada’ quase que nacionalmente.
Dias antes, alguns políticos de renome ameaçaram bater no presidente Lula publicamente, também com ampla cobertura da imprensa. O que se nota é que a imprensa brasileira está pouco-a-pouco perdendo a compostura e deixando de lado tudo aquilo que significa ética, responsabilidade social, equilíbrio etc. A mídia passou a fazer campanha, propaganda, manipulando informações sob o manto sagrado da liberdade de imprensa. Qualquer denúncia contra determinados políticos ou figuras de proa do governo, independentemente de ser verdadeira, sem comprovação, é divulgada em grandes manchetes. A corrupção, de algo genérico amplamente utilizado na história dos governantes e políticos do país, passou a ser praticamente a única característica do atual governo.
Poucos foram os veículos de imprensa que deram espaço igual ao das denúncias à defesa dos acusados. Quando isso acontecia, a defesa era jogada em cantos das páginas, lá no meio, distantes das matérias bombásticas e definitivas. Criou-se no Brasil um clima de revanchismo, de raiva incontida com os políticos corruptos denunciados, quase que como uma caça às bruxas. Pouco importava se de fato eram ou não corruptos. Uma denúncia era o suficiente. ‘Depois a gente vê’, tem sido a regra do ‘jornalismo’ brasileiro.
Acerto de contas
Figuras do cenário político do país conhecidas pelo passado nada democrático por terem sido criadas durante a ditadura ou com inúmeras e fortes suspeitas de corrupção braba, tráfico de influências, caixa dois etc. passaram a ser arautos da verdade, da honestidade, da ética, levantando o dedo acusador para os novos ‘corruptos de plantão’, fossem ou não corruptos. E a imprensa mostrando tudo isso sem nenhum filtro ou investigação jornalística. As CPIs, tal qual arenas da velha Roma, serviram de palco privilegiado para ‘atores’ novos e velhos, demagogos ou sinceros, corruptos ou sérios, tudo isso sendo mostrado ‘ao vivo e a cores’, online. Bandidos velhos passaram a ser mocinhos e alguns mocinhos velhos rapidamente passaram a ser mostrados como bandidos novos. Fossem ou não fossem, assim foram mostrados pela mídia ensandecida e sedenta de sangue na areia.
Então, aquela bengalada na cabeça de Dirceu foi apenas a coroação de um clima que vem sendo preparado pela mídia a título de ‘jornalismo livre e democrático’. Daqui a pouco, alguém pode resolver dar um tiro em algum político considerado corrupto e, com certeza, quererá sair no noticiário explicando que fez isso em nome da honestidade e do povo brasileiro. E haverá gente concordando com isso, exigindo que o libertem e que o coloquem no pavilhão dos heróis nacionais.
Por que não? Afinal, não tem sido esse o clima e a expectativa criada pela mídia na sociedade brasileira, ajudando na campanha partidária para a sucessão do Lula em 2006? Existe muita raiva acumulada na sociedade e ela está sendo canalizada pela imprensa para uma espécie de acerto de contas do povo, sabe-se lá que povo é este, com os governantes. Assim, não será nenhum espanto se ‘o dia do gafanhoto’ acontecer em algum lugar do Brasil e de forma violenta. E com ampla e maciça cobertura da mídia, tudo em nome da ‘liberdade de imprensa’. O filme é muito bom e deve ser visto. Agora, quanto à conjuntura nacional, sei não. Pode-se perder o controle. Igual ao filme…