Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Mídia usa Grafite para pichação

Foi injúria e injúria racista, disso ninguém duvida. Nem mesmo a torcida do Quilmes. Racismo no Brasil é crime, crime exige punição. Mas racismo de argentinos contra brasileiros, e ainda mais num campo de futebol, situa-se numa instância especial: é crime de lesa-pátria. Atentado à honra nacional. Casus belli.


A mídia, a começar pela eletrônica, e em seguida endossada pela impressa, aproveitou a infração cometida pelo zagueiro portenho Leandro Desábato contra o atacante brasileiro Grafite para armar um circo onde, em certos momentos, o repúdio ao racismo ficou abafado pelo berreiro e ímpetos linchatórios.


A prisão do infrator ocorreu na quarta-feira (13/4) à noite, ficou na primeira página da grande imprensa e da imprensa popular durante dois dias, foi acompanhado minuto a minuto por vibrantes boletins radiofônicos, abriu a ‘escalada’ dos telejornais no horário nobre de quinta à sexta, e ninguém se deu conta de que aqueles que apelidaram o jogador Edinaldo Batista Libânio de Grafite são tão racistas quanto Leandro Desábato. Com o agravante de que uma alcunha não é fruto de um impulso, ato impensado, mas hábito que se repete lentamente até marcar como ferrete.


Grafite foi injuriado em campo por um adversário estrangeiro que não conseguiu detê-lo numa jogada, mas a injúria, na realidade, começou muito antes, quando aquele garoto endiabrado driblava todo mundo na pelada de várzea em Jundiaí e seus companheiros resolveram transformar a cor de sua pele em estigma. Que nenhum radialista e jornalista brasileiro teve o cuidado de evitar, condenar, corrigir.


Bode expiatório


O grande Leônidas da Silva (1913-2004) foi consagrado como o Diamante Negro depois do seu sucesso internacional, mas o pobre Edinaldo, filho dos tempos politicamente corretos, ganhou fama como Grafite. Não pegava bem chamá-lo de Tiziu, Tição, Crioulo, Carvão ou mesmo de Saci. Grafite disfarça o pejorativo racial com algo de ‘artístico’. Mas Grafite equivale a Piche. Piche cola, gruda, é indelével.


Incapaz de perceber o que havia de insultuoso no apodo Grafite, a mídia aproveitou o incidente para pichar os argentinos. Pichar e purgar velhas xenofobias contra estrangeiros. Como não podem chamar os argentinos de gringos, muitos comentaristas esportivos servem-se do errôneo cucarachos, baratas, para designar genericamente todos os hispano-americanos. E reclamam da arrogância dos portenhos quando nos chamam de macaquitos.


A grande verdade é que a mídia brasileira, no lugar de oferecer à opinião pública padrões edificantes e qualificados, nivela-se aos padrões mais desqualificados e aviltantes que capta. A mídia vai na onda, e quando esta onda parte dos meios de comunicação mais populares torna-se impossível distinguir jornalões de jornalecos, classe A da classe E, o camarote da galera.


Leandro Desábato foi preconceituoso e agressivo. Mas foi também bode expiatório para a exibição de uma carga de intolerância não muito diferente. Serviu para lembrar que já temos uma legislação para acabar com o ancestral racismo, falta agora um estímulo para eliminar os ressentimentos.