São tremendos os desafios da era digital colocados diante dos responsáveis pela mídia gutenberguiana. Ela está deixando de ser o suporte principal de notícias, análises, comentários, opiniões. Trata-se de um processo que ocorre mais ou menos rapidamente segundo o país, a região, a classe socioeconômica, a educação, a cultura (conceito que inclui as técnicas) etc. Mas é inexorável. Na magnífica ilustração de José Américo Gobbo, o náufrago se equilibra sobre papel e a mensagem na garrafa é o digital, ainda com o cordão umbilical que a prende a uma fonte física de energia.
Nos Estados Unidos, informa a NAA (Newspaper Association of America), a audiência digital atingiu em agosto novo pico: 164 milhões de visitantes únicos (indivíduos com 18 anos de idade ou mais; a população total americana é estimada em 318 milhões). Oitenta por cento dos adultos que estiveram online em agosto leram conteúdo jornalístico digital. Mulheres jovens são o grupo onde se verifica o maior crescimento. Os que usam dispositivos móveis – smartphones e tablets – para ter acesso a esse conteúdo são agora mais numerosos do que os usuários de computadores desktop ou laptop (ver aqui, em inglês).
Combate de retaguarda
O papel sobreviverá, mas o suporte digital será cada vez mais dominante. Por uma série de razões, entre as quais: a atração do “tempo real”; as possibilidades de articulação entre texto, imagem e som; o custo da distribuição, embutido no preço de cada exemplar, é substituído pelo custo da recepção, pago à parte pelo leitor (é o que acontece com rádio e televisão; compra do aparelho + conta de luz ou compra de pilhas); a perspectiva comercial: quanto mais gente entrar no meio digital, e quanto mais os publicitários aprenderem a usá-lo, melhor será o “modelo de negócios”.
Para isso será necessário que designers, diagramadores e programadores melhorem o produto e consigam formatos minimamente decentes principalmente para smartphones e tablets, e o que mais vier em matéria de dispositivos móveis. Eles o farão, mas ainda estamos um pouco distantes disso.
O papel sobreviverá enquanto estiverem vivas as gerações formadas nele e mesmo depois. Mas não é demais imaginar que as últimas gráficas com as funções atuais serão as dos países em que mais tardiamente elas foram introduzidas.
Algo semelhante acontece com mídias superadas, como o disquete: governos e empresas de países ricos num dado momento se lançaram à busca de equipamentos antigos onde eles ainda sobreviviam, isto é, países pobres e tecnologicamente atrasados. Nos países ricos não havia mais equipamentos com que ler dados arquivados nesses suportes.
Se faz caminho ao andar
A batalha das redações dos “impressos como modelo de negócios” é de retaguarda, sem opção de vitória, só de retardamento da derrocada, como se encarregam de reiterar ad nauseam os arautos do apocalipse. Mas, como toda e qualquer profecia, esta não se realizará do modo imaginado pelos profetas: a vida não segue nossos roteiros.
Seja como for, é da maior importância conhecer, preservar e melhorar a cultura das redações, que não desaparecerão e, encontrado um caminho de mercado, se tornarão ainda mais importantes do que hoje, porque é cada vez mais crucial usar critérios profissionais, cívicos e, tanto quanto possível, democráticos para filtrar e qualificar informações, como se propõe neste Observatório da Imprensa desde 1996. Mas é certo que a arrogância do um-para-muitos chegou ao fim. (Mas não a do “muitos-para-muitos”, ou, mais provavelmente, “para alguns”; ao contrário.)
Maneiras de pensar
Mudanças com a magnitude da atual só houve duas na história do planeta. A primeira, datada pelos especialistas de 36 séculos atrás, foi a passagem da palavra falada para a escrita. Uma não matou a outra, mas mudou a maneira de pensar dos humanos.
Permita-me o leitor uma longa citação que talvez lhe pareça desnecessária, mas assim não pareceu a este simplório escriba:
“A lógica pode ser imaginada como algo que existe independentemente da escrita – silogismos podem ser ditos tanto quanto escritos –, mas isso não é verdadeiro. A fala é passageira demais para se prestar a uma análise. A lógica descendeu da palavra escrita, tanto na Grécia como na Índia e na China, onde ela se desenvolveu de forma independente. A lógica transforma o ato da abstração numa ferramenta para determinar aquilo que é verdadeiro e aquilo que é falso: a verdade pode ser descoberta simplesmente nas palavras, afastada da experiência concreta. A lógica assume sua forma em sucessivas cadeias: sequências cujos membros se conectam uns aos outros. As conclusões são tiradas a partir de premissas. Estas exigem certo grau de constância. Não têm força a não ser que possam ser examinadas e avaliadas. Em comparação, uma narrativa oral se dá por meio do acréscimo, com as palavras desfilando em coluna diante da bancada da plateia, brevemente presentes e então passadas, interagindo umas com as outras por meio da memória e da associação.
“(…) Os povos orais não contavam sequer com as categorias que se tornam naturais até para indivíduos iletrados que vivem em culturas letradas: as formas geométricas, por exemplo. Quando mostraram a eles [indivíduos iletrados do Uzbequistão e do Quirguistão nos anos 1930] desenhos de círculos e quadrados, eles os identificaram como ‘prato, coador, balde, relógio ou lua’ e ‘espelho, porta, casa, tábua de secagem de damascos’.” (James Gleick, Augusto Pacheco Calil, A informação – Uma história, uma teoria, uma enxurrada, e-book, Companhia das Letras, s/d; edição original de 2011.)
Insistamos no tópico da mudança de modo de pensar promovida agora não mais apenas pela palavra escrita, mas também pela impressão. Gleick dá o exemplo do dicionário:
“O dicionário ratifica a persistência da palavra. Declara que o significado das palavras vem de outras palavras. Implica que todas as palavras, reunidas, formam uma estrutura interligada: interligada porque todas as palavras são definidas em termos de outras palavras. Isso nunca poderia ter acontecido numa cultura oral, na qual a linguagem mal podia ser vista. Foi somente quando a prensa de tipos móveis – e o dicionário – colocou a linguagem numa distinção separada, como um objeto passível de análise, que se tornou possível desenvolver a ideia do significado das palavras como algo interdependente e até circular. As palavras tiveram de ser consideradas como palavras, separadas das coisas.”
Livros e desrazão
A segunda grande transformação, diferentemente da primeira, tem um autor identificado: Gutenberg. Livros já existiam, manuscritos. Eram raros, por isso caros, e pouca gente na Europa, que se encontrava então a caminho de se tornar o centro do mundo, podia se beneficiar de seu conteúdo: as massas cristãs eram analfabetas.
Entre 1455 e 1500, vinte milhões de exemplares de livros foram impressos na Europa. Pouco mais de um século depois, Cervantes cria um personagem tornado louco pelo excesso de leitura. A tal ponto que dois amigos do fidalgo Don Quixote, o padre e o barbeiro da cidade do herói, sua ama e sua sobrinha queimam a maior parte de seus livros e muram a entrada de sua biblioteca, enquanto Alonso Quixada, que voltara arrebentado de uma de suas primeiras aventuras, descansa.
O Don Quixote é um livro sobre livros, escrito num período em que livros estavam mexendo com a cabeça das pessoas. Nos séculos seguintes, as populações europeias – primeiro os protestantes, depois os católicos – iriam se alfabetizar. “Perder o eixo” devido a leituras continuaria sendo um fenômeno frequente. A publicação de Os sofrimentos do jovem Werther (1774), de Goethe, e de traduções em diferentes línguas provocou uma onda de suicídios na Europa. Um século e meio depois, o sucesso de Mein Kempf, de Hitler – que se tornou um homem rico com os direitos autorais –, lastreou uma onda de assassinatos em massa.
Mídia de massa e após
A mídia de massa (broadcast), que nasce na segunda metade do século 19, mexe muito com a maneira de pensar: telégrafo e telefone (e jornais com notícias frescas), cinema, rádio (“tempo real”), televisão. Gleick usa uma citação do New York Herald para ilustrar o caso do telégrafo:
“O telégrafo do professor Morse não apenas representa uma nova era na transmissão das informações como também deu origem a toda uma nova classe de ideias, uma nova espécie de consciência. Nunca antes uma pessoa teve a consciência de saber com certeza aquilo que estava ocorrendo num determinado momento numa cidade longínqua – a 60, 160 ou 800 quilômetros de distância.”
O conceito da Mídia Ninja, testemunha e protagonista dos protestos de junho de 2013 no Brasil, gira em torno de uma sincronia mais específica: saber (sem muita certeza, porque a narração é tumultuada pela concomitância da participação nos protestos) o que está ocorrendo numa manifestação pública subestimada ou ignorada pela mídia jornalística convencional. É como se se tratasse não de outro local, distante, mas de outra dimensão da vida social, igualmente distante, no começo, posteriormente apropriada por multidões e hoje, novamente, por enquanto, distante, fechada a uma presença mais ampla de “pessoas comuns”.
Palavra escrita
A palavra escrita é novamente o instrumento de uma terceira grande transformação, ainda em seu curso inicial, a que conduz à era digital. Voltemos ao livro de Gleick:
“Como a prensa de tipos móveis, o telégrafo e o telefone, que a antecederam, a internet está transformando a linguagem simplesmente ao transmitir a informação de outra maneira. Aquilo que torna o ciberespaço diferente de todas as tecnologias anteriores da informação é sua mistura de escalas, da maior até a menor, sem prejuízo, transmitindo para milhões, comunicando-se especificamente com grupos, enviando mensagens instantâneas de um indivíduo para o outro.”
Se o universo da palavra digitalizada propõe com alta frequência desafios novos ao entendimento dos modos de pensar, que ao mesmo tempo se homogeneízam e se diversificam em alta velocidade, a mídia jornalística impressa tem especificamente tarefa ainda mais penosa. Sua passagem para a distribuição em meio digital (a produção do conteúdo é digitalizada, no Brasil, há mais de trinta anos) envolve o domínio básico de um terreno multiplamente movediço.
É preciso ter alguma compreensão das mudanças na maneira de pensar; das mudanças, muito recentes, na maneira de ter acesso à informação e, novidade, responder imediatamente, com palavras escritas, a ela. E é preciso dominar as técnicas de publicação de texto, áudio e imagem (fixa e em movimento) nas telas que a indústria de informática oferece a cada momento. Tudo com grande dispêndio de dinheiro e de tempo, que também é dinheiro. Veja-se que o Porta dos Fundos põe na rede vídeos com alta definição, portanto capazes de rodar nos mais diversos aparatos sem excessiva perda de qualidade.
Comunicação interpessoal
As dificuldades de conhecer o que ocorre na era pós-mídia de massa são expostas em dois textos publicados em 2010 no blogue Media Studies 2.0, do professor e pesquisador William Merrin, da Universidade Swansea, no País de Gales: “Understanding Me-dia: The Second Reformation” e “Studying Me-dia: The Problem of Method in a Post-Broadcast Age”. (Nota: a forma “Me-dia” não é erro de digitação; é um nome, intraduzível em português, que o autor encontrou para designar o espaço da comunicação horizontal, ponto-a-ponto, ou par-a-par – peer-to-peer, P2P –, comunicação interpessoal mediada; ele explica por que gosta da expressão sintética: “Porque enfatiza o fato de que Eu [“I”, daí o “me”] estou no centro dessa comunicação”.)
Merrin é autor citado por Andrew Hoskins, da Universidade de Glasgow, Escócia, palestrante convidado para o 8º Fórum de Gestão do Conhecimento, Comunicação e Memória, promovido em agosto pela Memória Votorantim, em parceria com a Associação Brasileira de Jornalismo Empresarial (Aberje), o Museu da Pessoa, a Escola de Comunicações e Artes da USP e o Grupo de Estudos de Novas Narrativas (Genn), da ECA-USP.
No texto “The Diffusion of Media/Memory: the new complexity”, Hoskins usa uma “excelente e detalhada caracterização da mudança de paradigma da mídia de massa para uma nova era”, produzida por Merrin em 2008 no seu blogue (em tradução livre):
“No lugar de uma enxurrada vertical de cima para baixo, um-para-muitos, com origem numa indústria centralizada, descobrimos hoje uma comunicação de baixo para cima, muitos-para-muitos, horizontal, ponto-a-ponto. A mídia ‘solicitada’ [‘pull’ media] desafia a mídia ‘imposta’ [‘push’ media]; estruturas abertas desafiam estruturas hierárquicas; microproduções desafiam macroproduções; produção amadora de acesso aberto desafia produção de acesso fechado elaborada por profissionais de elite; barreiras econômicas e tecnológicas à produção midiática são transformadas por tecnologias baratas, democratizadas e fáceis de usar.”
Mídia e me-dia
Assim, “existe a media e, fora dela, a me-dia”, propõe Merrin. A variedade e a disseminação das formas de comunicação interpessoal mediada fazem com que elas sejam importantes não apenas para cada indivíduo mas igualmente como fenômeno social de grande magnitude. Merrin pontua:
“A mídia digital não inventou isso, mas ampliou nossa capacidade de nos comunicarmos, de produzir, compartilhar, ter acesso, enviar e publicar. Eu apostaria que uma maioria da população dedica mais tempo e atenção à me-dia do que à grande mídia de massa.” (Registre-se que ele se refere à realidade da Grã-Bretanha.)
O pesquisador faz um inventário básico das modalidades existentes de me-dia: textos, fotos e vídeos em dispositivos móveis; e-mails, mensagens pessoais, mensagens instantâneas; contribuições em salas de chat, fóruns e mailing lists; participação em redes sociais (postar, compartilhar, mandar mensagens, escrever nos murais virtuais, atualizar status, tuitar, linkar); contribuições para redes sociais de compartilhamento (YouTube, Flickr), sites de fãs e colaborativos (wikis); vídeos e textos de pornografia amadores; produção de música, imagens, softwares; mais todos os comentários, listas, recomendações, respostas. Merrin pergunta quem estudou alguma(s) dessa(s) modalidades e comenta nem ter certeza de que isso seja possível.
“Segunda Reforma”
Audaciosamente, ele avança a ideia de que esse conjunto de atividades configura a “Segunda Reforma” ocidental, a primeira tendo sido, como se sabe, protagonizada pelo monge Martinho Lutero (1483-1546) em sua rebelião contra a doutrina, a hierarquia e as práticas da Igreja Católica. Tornada possível pela invenção de Gutenberg.
Merrin parte da constatação de que no mundo medieval a Igreja Católica tinha uma posição dominante na vida das populações da Europa, e que pode ser pensada como uma mídia, particularmente em dois sentidos.
“Primeiro, era uma formação institucional que distribuía uma doutrina única e uniforme para a massa da população, operando dentro de um modelo de cima para baixo, hierárquico, que empregava as tecnologias de que dispunha (monastérios, manuscritos etc.) para distribuir sua mensagem. Nesse sentido, funcionava como uma mídia de massa, utilizando a mesma estrutura “hub-and-spoke” [rede usada, notadamente, na logística da aviação civil, em que diferentes destinos se conectam a um hub, um ponto central] que ligava as pessoas a ela, Igreja, e não umas às outras. Segundo, a instituição agia como meio para a relação do indivíduo com o divino. Seus representantes eram os mediadores designados da mensagem e da vontade de Deus.”
O autor afirma então que entre as numerosas causas da Reforma protestante dois processos foram centrais: oposição à forma de organização (a produção e mediação de cima para baixo de uma mensagem institucional) e uma nova ênfase no indivíduo.”
Para Merrin, o processo que vai desembocar na mídia de massa foi conformado por diferentes forças – a disseminação da cultura impressa, a ascensão da ciência moderna, o Iluminismo e a revolução industrial – a minar a posição da Igreja como mídia de massa culturalmente dominante difusora de uma “mensagem única para uma população cativa”.
A Igreja vivia em tensão “não apenas com um secularismo crescente, mas também com formas alternativas de conhecimento e informação. O florescimento da mídia de massa – por meio da impressão de panfletos e jornais – era um desafio à sua dominação midiática por meio da estrutura hub-and-spoke.”
Contexto mundial
Convém não perder de vista que o processo envolve muito mais do que a Igreja. Para uma visão histórica mais ampla, usemos uma passagem da História Concisa da Alemanha, de Mary Fulbrook (Edipro, 2012). A autora insere a Reforma luterana em seu contexto maior:
“Um conjunto de mudanças ocorridas entre o final do século 15 e o início do 16 tornou esse período um divisor de águas na história europeia. A (re)descoberta da América em 1492 inaugurou um novo mundo, com efeitos significativos para a economia e a política do velho mundo; a ‘crise do feudalismo no final da Idade Média’ deu início à formação de uma classe desprovida de propriedades e que trabalhava por um salário, precursora de um capitalismo em desenvolvimento; a emergência de um sistema recíproco de Estados europeus cada vez mais centralizados começou a substituir a soberania dispersa e a política mais localizada do feudalismo; a invenção de uma técnica da prensa de tipos móveis criada por Gutenberg modificou de forma radical a vida intelectual; e a Reforma iniciada por Martinho Lutero rompeu a unificação religiosa e cultural da cristandade medieval, com um processo de confessionalismo territorial que reforçava e era reforçado pelos processos simultâneos de construção do Estado territorial.”
Usuário vs. audiência
De volta a Merrin. Ele explicita em seguida sua divergência com grande parte dos pesquisadores da mídia:
“Com a ascensão da mídia digital contemporânea e seu potencial interativo e produtivo, estudos de audiência erroneamente viram suas ideias de audiência ativa realizadas, quando na verdade a ascensão do usuário se dava precisamente às expensas da audiência, assinalando uma mudança fundamental na existência e no valor do conceito. Em última instância, o grande efeito da ascensão do usuário não foi na atividade de membro da ‘audiência’ diante do produto feito e distribuído em massa, mas na explosão da me-dia e do campo do significado pessoal.
“Essa explosão representa, quero sustentar, uma ‘Segunda Reforma’. Do mesmo modo como a primeira Reforma foi marcada por um assalto contra um modo um-para-muitos de organização, em favor do campo do pessoal e do interno e de sua expressão, a segunda Reforma – ainda que sejam significativamente diferentes sua secularidade, seu contexto cultural e seus meios tecnológicos – ecoa diretamente esse assalto. Como no assalto luterano à Igreja, estamos vivendo um deslocamento sísmico no qual um modo organizativo inteiro de interconexão e produção, distribuição e consumo em massa de mensagens é derrubado em favor do acento no pessoal e em sua expressão. E assim como na primeira Reforma, isso não conduz ao final definitivo da forma de organização a que se opõe, mas a uma fratura e fragmentação, a uma proliferação de novas ‘igrejas’ com suas próprias hierarquia e clero (Facebook, YouTube, Flickr) e a um afunilamento da expressão individual e da interioridade em novos formatos.
“Em seu coração, porém, existe um ideal luterano transformado para uma nova era, diferente. Assim como a ideia de cada homem como seu próprio padre representou uma investida fundamental contra o sistema, as instituições, as regras, as hierarquias, os interesses e os papéis e privilégios econômicos, sociais e culturais, e o quadro epistemológico de toda uma era em que cada homem tem seu próprio blogue, sua própria câmera de vídeo e celular com câmera representa um assalto contra um sistema, um conjunto de instituições, regras, hierarquias, interesses, papéis, privilégios e a epistemologia social de nossa era.”
O texto sobre a “Segunda Reforma” termina com a advertência de que a mídia digital, evidentemente, não apenas dá poder ao indivíduo, mas é igualmente usada contra esse indivíduo, permitindo monitoramento, penetração e controle do comportamento e da atividade individual maiores do que os que eram possíveis na era da mídia de massa e sua tecnologia. O famoso “outro lado da moeda”.
Insubordinação democrática
Uma segunda e mais importante advertência é indispensável. Em todas as épocas, os avanços são aproveitados inicial e principalmente pelas partes superiores da pirâmide socioeconômica e política. Quanto maior e mais refinada a bagagem educacional e cultural do destinatário de uma nova tecnologia – desde que esta não seja eriçada de defeitos de concepção e realização, bugs etc. –, maior o proveito que ele tirará de cada avanço na maneira de trabalhar com palavras, som e imagem.
Qualidade, por si só, não reduz a desigualdade. Tende mesmo, num primeiro momento, a aumentá-la. Ou alguém acredita que as classes dirigentes (dominantes, em países mais atrasados) vão pavimentar espontaneamente o caminho da ascensão tecnocultural das massas? Ainda que disputar a atenção de um público cada vez maior seja o caminho do lucro das grandes corporações de mídia, só uma apropriação consciente dos conteúdos pode permitir uma insubordinação democrática fecunda.