Irreverente, alegre, generosa, agradável, criativa, solidária, refinada e o escambau: da noite para o dia, a cidade do Rio virou a queridinha do Brasil, metrópole ideal, utopia materializada, perfeita transposição do século 16 ao 21que com alguns poucos bilhões de reais facilmente será esticada até o século 22.
Ninguém lembrou dos elefantes brancos – a Cidade das Artes na Barra da Tijuca, por exemplo – e os monumentos históricos – o Palácio Monroe, sede do Senado Federal – que os grandes jornais locais permitiram converter-se em pó em troca de favores do governo do antigo estado da Guanabara.
A cidade como coisa viva foi menos celebrada do que os Jogos Olímpicos de 2016, que durarão apenas 40 dias. O Engenhão, construído a toque de caixa para abrigar os Jogos Panamericanos de 2007, ficou mais tempo fechado do que em funcionamento. Culpa das empreiteiras.
A charmosa Lapa carioca sobreviveu e hoje floresce porque os tubarões imobiliários locais estavam falidos, sem recursos para arrasá-la e transformar os românticos sobrados em espigões comerciais. A escassez, em certas circunstâncias, pode ser socialmente mais útil do que a fartura. São Paulo é o exemplo oposto.
Não basta ser bonita, uma cidade precisa ser amada, se possível venerada. Lisboa tem desde sempre os olissiponenses (da Olisipo romana), devotados amantes de sua história, guardiões de sua alma, passado, figuras e logradouros. Portugueses são colecionadores natos – o país é minúsculo, precisa ser preservado. Nós brasileiros, ao contrário, somos dissipadores, temos tudo em demasia Ou tínhamos – basta lembrar o que aconteceu com a água.
Delegar apenas aos arquitetos, urbanistas e historiadores a maravilhosa missão de amar o recanto natal é uma forma enganosa de perenizar uma cidade. Nada contra esses profissionais, mas eles são profissionais; precisamos de diletantes, amadores e amantes vestindo a camisa da cariocofilia – cervejeiros, advogados, farmacêuticos, filólogos, filatelistas, padeiros e quitandeiros, manicuras, futebolistas, músicos, médicos, fotógrafos, funcionários públicos, taxistas, desenhistas, tipógrafos e, principalmente, sobretudo, mormente jornalistas.
Na temporada pré-450 apareceram alguns jornalistas cariocofílicos ou cariocômanos, louvados sejam para todo e sempre. Precisamos de um contingente dez vezes maior. Jornalismo é uma forma de registrar o passado em movimento, ou de fazer história sobre pressão – como dizia o inesquecível Alceu Amoroso Lima.
Prova da desgraçada carência: não apareceu uma só reportagem para lembrar que a primeira tipografia autorizada a funcionar na colônia foi aquela que veio de Londres via Lisboa encaixotada no porão da nau Medusa logo depois da chegada da família real em 1808 e que custou cem libras esterlinas (ver “A tardia chegada da imprensa ao Brasil”).
Ninguém teve a audácia para lembrar que o país passou os primeiros 308 anos de sua história ignorando os poderes daquela prensa que não diferia muito da outra, a que esmagava azeitonas para fazer azeite e aperfeiçoada pelo fundidor alemão Johannes Gutenberg. Mais da metade de nossa existência legal (515 anos) foi passada em condições semelhantes às da Idade Média.
O período de trevas poderia ter sido encurtado em 61 anos se uma tipografia trazida de Lisboa em 1747 não tivesse sido impiedosamente desmantelada obedecendo às ordens (evidentemente manuscritas) vindas da Inquisição de Lisboa.
Com a tipografia instalada no Rio (provavelmente nas cercanias do atual Passeio Público) foi possível imprimir, em 10 de setembro de 1808, o primeiro periódico na América portuguesa, a Gazeta do Rio de Janeiro, precursora dos diários oficiais. Mesmo assim, acredita-se que não conseguiu ser o primeiro veículo jornalístico a circular na cidade-aniversariante: é bem possível que o Correio Braziliense, ou Armazém Literário, mensário impresso em Londres, em 1 de junho, tenha chegado antes ao Rio. De qualquer forma, tinha a vantagem de não ser censurado e jamais o foi nos 14 anos seguintes (“200 anos de Imprensa no Brasil”).
O texto introdutório de Hipólito da Costa (seu fundador e único redator) é considerado o marco fundador da imprensa livre no Brasil. Da primeira às 61 linhas seguintes, um compromisso do jornalista com o bem-estar da sociedade e seu desenvolvimento cultural (ver “Hipólito da Costa, o crítico boicotado”).
Quando D. Pedro I foi proclamado imperador (12 de outubro de 1822, fato que marcou efetivamente nossa emancipação), já estavam sendo impressos no Rio quatro periódicos livres de censura (além do londrino Correio e do baiano Idade d’Ouro do Brasil, fundado em 1811): o Revérbero Constitucional Fluminense (de 1821), O Patriota (de 1813), o Correio do Rio de Janeiro, de 1821 e A Malagueta (também de 1821).
São Paulo só conheceu uma imprensa local 19 anos depois (em 1827); o Diário de Pernambuco, o mais antigo jornal ainda em circulação da América Latina, é anterior (1825). No entanto São Paulo é a dona da mídia brasileira
Cidade midiática
Na festa dos 450 anos do Rio não apareceu uma alma generosa para lembrar as glórias passadas, a primazia e o protagonismo da imprensa carioca ou fluminense. Em 2008, por ocasião das festas para lembrar os 200 anos da chegada da corte ao Brasil, a lembrança dos 200 anos da fundação da nossa imprensa foi rigorosamente escamoteada. Não convinha, era melancólico demais (ver “Uma comemoração envergonhada”).
Aquela imprensa exuberante, diversificada e excitada que conseguiu chegar ao quarto centenário do Rio, em 1965, está hoje reduzida a dois jornais: o ônibus chamado Globo & o irmão caçula Extra, e o valente O Dia.
Naquele ano surgia a TV Globo. Valeu a troca? Cartas para a redação.
Desapareceram, foram para o espaço – ou para as nuvens – as aguerridas e adversárias Última Hora e Tribuna da Imprensa, o onipotente Correio da Manhã, o engravatado Diário de Notícias, o charmoso Diário Carioca e o jornal-símbolo, jornal-escola, jornal-saudade, jornal-país, dito “do Brasil”.
A cidade midiática, emissora, tambor ouvido do Oiapoque ao Chuí, hoje se contenta em imaginar-se sedutora. Disfarça, olha para o lado, finge que não vê os escombros do Leviatã desnorteado que soçobrou na praia.