Desde 2006 à frente da Fundação Biblioteca Nacional e, mesmo com tamanha responsabilidade, ainda ministrando aula aos alunos da Escola de Comunicação da UFRJ, onde é professor titular, Muniz Sodré continua a exercitar um agudo olhar a respeito dos fenômenos sociais que têm na mídia uma cada vez mais importante e fundamental caixa de ressonância.
Na entrevista abaixo, concedida ao professor Paulo César Castro, também da ECO, especialmente para o site do CISECO, Muniz vai do papel da mídia na disputa eleitoral para a Presidência da República neste ano, passa pelo debate sobre o conceito de midiatização – fundamental para entender o papel dos meios de comunicação nas sociedades contemporâneas – e chega à distinção, para ele necessária a partir do uso de novas tecnologias, entre aprender, ensinar e educar.
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Aproveitando o atual momento de disputa eleitoral, com os três principais candidatos à Presidência da República – Dilma Rousseff, José Serra e Marina Silva –, e tomando como preponderante o papel dos meios de comunicação neste quadro político, como você acha que será a atuação da mídia? Será uma atuação importante ou secundária na definição do resultado das urnas?
Muniz Sodré – Eu fiz um artigo para o Observatório da Imprensa recentemente sobre o assunto (‘O tempo contado da política‘, em 18/5/2010 ) e, através dele, busquei mostrar que, atualmente, vivemos a consolidação ou o acabamento de uma tendência, de um fenômeno, que já acontece, aqui no Brasil, há mais de 20 anos, e nos Estados Unidos, desde o final do século passado. Ao ler Minha Formação, do Joaquim Nabuco, veremos a referência que ele faz à publicidade e ao marketing, ao espetáculo nas eleições americanas. Ele observou e ficou espantado com aqueles elefantes que circulavam… Mas aqui no Brasil, de 20 anos para cá, e na Europa também, há o fato, digamos assim, ineludível, incontestável, do esvaziamento dos partidos políticos. Os partidos políticos são juridicamente necessários, juridicamente indispensáveis para manutenção de registros de candidatos, para se fazer alianças, mas não representam mais segmentos específicos de eleitores nem as frações de classe que representavam antes. O que é que os partidos representam? Representam a eles mesmos, giram burocraticamente em torno deles mesmos. Agora, se você parte desse fato, você se pergunta: o que entra no lugar, nesse vazio da representação? Eu diria que é a plenitude da apresentação, portanto mídia, portanto imagem. Então a mídia é o que tonifica, é o que enche esse vazio. Anos atrás, quando se lia os livros do Baudrillard, isso parecia um pouco futurismo, parecia absurdo. Alguém dizia: ‘A política vai desaparecer’; desaparecer nada, ela está aí. A classe política está aí, instalada no seu lugar… Mas ela está instalada como um simulacro da função de poder que os partidos tinham, e que continua como poder, mas no nível da ‘pequena política’, como Gramsci conceituou. Gramsci falou sobre a grande política, que é a política das mudanças institucionais, das transformações sociais profundas, e sobre a pequena política, que é a política partidária, de alianças, de conchavos. Se você vir as colunas políticas – como é o caso dos comentários do [Ricardo] Noblat, do [Jorge Bastos] Moreno –, de modo geral foram para o faits divers, quer dizer, foram para a vida das pessoas, para o engraçado, para um certo humor. Ou seja, a política é tratada na mídia como faits divers. O que está se discutindo hoje é se o Serra é feio, se a Dilma é dura. Com isso, na verdade, a grande questão é discutir a performance em público e na televisão. Eu não vi ninguém discutir o programa dos candidatos na esfera pública; primeiro, porque se parecem. A evolução das discussões, portanto, está no sentido da performance. Você vê que a Dilma está melhor. Ela entrou dando canelada nas pessoas. Já colocaram-na no lugar. Quem é que colocou? A direção da campanha, ou seja, os modeladores de imagem. E o Serra, que é grosso, que é de uma antipatia, também está uma simpatia. Então acontece o deslocamento da argumentação política, própria do que eu chamei no meu livro de sensível (As estratégias sensíveis: afeto, mídia e política), para os campos da aparência e do afeto, ou seja, para o plano do ‘eu gosto’, ‘eu não gosto’, que foram os grandes motivadores da campanha do Lula. As pessoas que votaram no Lula votaram principalmente por esse afeto à política de uma pessoa que era mítica e que se tornou mítica.
Oito anos de governo depois, continua nesse patamar mítico?
M.S. – Continua. É preciso ver se ele transmite isso para a Dilma. Alguma coisa me diz que ele está conseguindo transmitir. Eu não sei se ele transmite votos, mas ele está transmitindo imagem, porque as imagens são virais, são viróticas. As imagens são da ordem do vírus: uma vez produzida a imagem, ninguém segura mais ela – pode ir para o pior, pode ir para o melhor. De algum modo, essa imagem do Lula vê-se na Dilma: uma imagem do tipo ‘paz e amor’. Mas vejo aqui também no Rio de Janeiro com o governador Sérgio Cabral [candidato à reeleição com apoio do presidente Lula]. Eu tenho estado nas inaugurações realizadas pelo Sérgio Cabral, e constato que ele ‘mimetiza’ o estilo do Lula. O estilo dele é o Lula.
Mas naturalmente, ou você acha que ele incorporou essa imagem como uma estratégia?
M.S. – Ele incorporou. Não sei se essa imagem é uma estratégia consciente ou deliberada, ou se essa imagem vem e de algum modo investe o sujeito. É que ninguém é dono de sua própria imagem; quer dizer, o Lula não é dono da imagem dele – ele pode até fazer aquilo que Ibrahim Sued fazia conscientemente. Eu conheci o Ibrahim; ele errava o português na televisão de propósito. Não é que ele fosse burro, mas ele errava. Às vezes, cometia um erro de português de propósito, para quem estava em casa risse dele. Mas quando ria, se identificava. Aí o telespectador se sentia: ‘olha aí, o cara que é rico, que é o Ibrahim Sued… eu sei que ele errou no português’. Então, ele não era um analfabeto. A mesma coisa é o Lula. Só que o Lula é um homem mais simples e, ao mesmo tempo, sofisticado. Um homem que é capaz de discutir sobre economia política nacional – e ele é capaz de discutir, eu sei que é –, não é um simplório. Ele pode não botar o plural nas palavras, como grande parte dos paulistanos. Ele não bota. Tinha um professor que foi aqui da Escola, muito bom, com um bom currículo, que não dizia ‘biblioteca’; era ‘bibrioteca’. Se você botar isso no Lula, se ele dissesse ‘bibrioteca’, era manchete de jornal no dia seguinte. Diriam que ele é ‘um analfabeto vindo do Nordeste’. Há um ‘paulistanismo’, no falar, que não era só dele. Ora, essa imagem dele, simples, às vezes simplória, se transmite, se torna viral, virótica. E a Dilma está vestindo essa imagem, está entrando nela. Eu não sei se é deliberada, porque as imagens administram a relação social. A imagem hoje é uma gestora de relação social.
E qual o papel da mídia na gestação destas imagens?
M.S. – A mídia tem um papel central… Eu não sei se mais a mídia tradicional; a televisão, certamente, a televisão é importante. Mas neste meu artigo que citei, falo do Plínio de Arruda Sampaio (candidato à Presidência da República pelo PSOL), que diz que a televisão não tem importância. Ele tem 44 segundos no horário eleitoral e confia na internet. Mas eu suspeito… O que se passou nos Estados Unidos com o Obama, onde a internet foi crucial, não é a mesma coisa aqui. O tempo de exposição na televisão é importante. A Dilma subiu nas pesquisas depois do programa do PT, depois de um tempo na televisão. Então, a combinação da televisão com a internet, nesse ponto, nos leva ao seguinte: há uma grande oposição, como mídia, entre a internet e a televisão. Alguns sites hoje da internet são a televisão de tempos atrás. Só a seção de esportes do Globo.com tem uma média de audiência de 5 milhões de pessoas. Nenhum jornal da história do Brasil alcançou estes números. Nenhum. Nos grandes tempos, a Veja podia chegar quase a 1 milhão de assinaturas. Agora as bizarrices, BBB, são outros números. Se você somar esses números, dá uma audiência fantástica, que resulta em anúncios. Ou seja, a internet, com toda interatividade, é televisiva.
Como você falou da internet e da crise dos partidos, gostaria que comentasse a defesa do Umberto Eco de que, com a ‘crise trágica da democracia representativa’ sob a qual vivemos atualmente, a internet, com seu potencial de agregação, pode ser a solução para este impasse. Ele acredita, portanto, que a internet pode vir a dar um novo caminho, em termos da potencialidade de participação que possibilita, a esta democracia representativa em crise.
M.S. – Eu não partilho da opinião do Eco. Eu acho, sem dúvida nenhuma, que os modos de uso da internet são diferentes e, pela interatividade que a internet garante, pode estabelecer outra relação do eleitor com o candidato, do eleitor com o sistema eleitoral. Mas na verdade, a crise da representação, como uma forma de representatividade, começa no século XIX. Há um estudo de [Carl] Schmitt [A crise da democracia parlamentar] mostrando que o Parlamento converge para o centro e, progressivamente, os partidos não representam mais classes sociais. Ora, o que se tornou, então, a democracia? Uma democracia plebiscitária, baseada em plebiscitos. É a lógica do ‘sim’ e do ‘não’. A lógica da pesquisa, da sondagem, é a lógica do ‘sim’ e do ‘não’. ‘Você vota ou não vota?’, ‘você gosta ou não gosta?’, ‘se tirar o candidato tal e colocar a Dilma, aí sobe…’. Depois que o Ciro saiu, a Dilma subiu. Isso é plebiscito, é plebiscitário, como é plebiscitária a sondagem com relação a produtos comerciais. Então eu acho que os partidos políticos, as eleições, a representatividade tradicional, ainda são a figura de uma democracia mais representativa do que social. A democracia hoje é mais social do que representativa. O que eu quero dizer: a democracia como difusão e abolição das barreiras para comportamentos iguais, homogêneos. Então, a democracia tem a ver com o modo como você se comporta em casa com sua mulher, com seus filhos, tem a ver com o relacionamento que você tem com diferenças, como gays, lésbicas, com os negros. A democracia social começa desde o ato de escovar dentes, do relacionamento com a mulher, de respeito com as diferenças. Portanto, uma democracia desejável, mas não é mesma coisa que uma democracia no sentido politicamente forte, que significa tomar posições diferenciadas com relação à história, com relação ao destino do país, com relação ao poder. A democracia representativa clássica é isso. A mídia tem mais a ver com essa forma plebiscitária, social democrata, do que com a democracia representativa tradicional. Então, os meios de comunicação se tornam, eles próprios, partidos políticos. Quer dizer, a mídia entra no lugar dos partidos políticos e se torna partido político. Então você diz: ‘bom, mas que partido político é esse que não indica candidatos, que não é reconhecido pelo sistema jurídico dessa forma?’. Mas eles não são juridicamente, nem formalmente, mas atuam como se. Ou seja, a mídia também funciona sob a lógica do como se fosse. É um pouco como se você fosse aquilo, como se o partido político fosse aquilo.
Em termos teóricos e de objetos estudados, como você vem acompanhando a discussão sobre o conceito de midiatização?
M.S. – Tenho acompanhado pouco porque estou à frente da Biblioteca Nacional. Mas leio tudo que chega. A professora Raquel Paiva deu uma entrevista importante para a Compós, na qual também foram ouvidos o André Lemos, da Universidade Federal da Bahia, e a Bernadette Lyra, da Universidade Anhembi Morumbi. E o que ela diz? Que acha que a nossa área não gera conhecimento, o que eu achei muito interessante. Ou seja, produz-se muita coisa, muito artigo, veste naquela camisinha de força da Capes, faz as citações, bota embaixo, cita fulano de tal, mas você dialoga com você mesmo. Cita-se livros estrangeiros, mas o diálogo é com você mesmo, ao invés de pegar as pessoas da área. Isso não é uma queixa minha, porque naquela bibliometria que a professora Immacolata fez, eu era uma das pessoas, se não a mais citada, uma das mais citadas; eu, o Arlindo Machado, Jesus Martin Barbero… Então não é um problema que diga respeito a mim. Mas é verdade isso que a Raquel diz. As pessoas não discutem as idéias dos colegas da área. E o que é o conhecimento? O conhecimento é: ‘alguém A produz um saber, que é observado por B, criticado por C’. Há na produção e circulação de saber numa comunidade que, na área de Exatas, se aplica… Você pode resolver uma equação que está aí há séculos, que ninguém resolveu, você faz todos os cálculos, mas não basta. Se a comunidade científica não reconhecer como verdadeira aquela evolução, você pena. Você não tem certeza, pois a coisa ali é tão abstrata, principalmente em matemática, porque não se reconhece. Assim é com outras áreas das exatas. Mas em Ciências Sociais, as pessoas citam muitos os estrangeiros, mas quase que idéia própria não é muito bem-vinda. Mas uma vez eu lhe digo, eu não me queixo muito. Essa minha idéia, esse conceito do bios que está no Antropológica do Espelho, tem muita gente que trabalha com isso agora. A questão do sensível não tanto, mas eu acho que é uma complementação do outro. Mas você não vê crítica, pois é quase uma ofensa você criticar alguém. E eu não sinto isso. Eu gostaria muito de ver alguém criticar mesmo, duramente, dizendo ‘eu não aceito isso’. Aí você passa a ter um debate… A Compós e a Intercom deveriam ser os lugares para isso, mas não. O que acontece? Você faz burocraticamente o seu texto, o seu paper, lê ali, as pessoas, uma ou outra, fazem uma observação na hora e foi cumprida uma tarefa diante da Capes e do CNPq. A área não produz conhecimento. É como se esse conhecimento não fosse necessário. Então, esses estudos sobre midiatização, eu recebo revistas, livros, estou a par deles, mas lhe digo que não me iluminam muito. Às vezes, há até artigos bastante detalhados de questões locais, mas as citações são burocráticas.
Você acha que o conceito de midiatização atualiza o debate acerca do papel das mídias nas sociedades contemporâneas?
M.S. – Acho. Foram muitos anos para que esse conceito entrasse. Não sei se você sabe, mas eu sou o introdutor dele aqui. No primeiro dicionário do Aurélio, não sei o atual, a palavra midiatização está lá referida a mim. Não havia, mas também não fui eu que inventei. Eu vi isso do Eliseo Verón, que usava mediatizacion. O que eu introduzi não foi nada de novo, mas a novidade é que eu introduzi aqui. Eu acho que a midiatização é um conceito axial da mídia, que abrange televisão, jornais e internet. São momentos técnicos diferenciados desse fenômeno de articulação das instituições, da vida das pessoas com a mídia. Midiatização é isso, essa articulação com instituições, com tecnologias, com a vida das pessoas. Portanto, você tem aí um objeto teórico, com medium como objeto teórico. Medium não é a televisão, não é a internet, medium é uma forma que interliga o discurso social. Como em Marx, o conceito de mais valia você não encontra em nenhum livro contábil. Mais valia é um conceito teórico, não está no livro de contabilidade capitalista. É um conceito para dar conta da apropriação que o capitalismo faz de uma parte do trabalho, do rendimento do trabalho. Medium é a mesma coisa, é um conceito dessa intervenção, dessa apropriação do discurso anterior que a indústria do jornal, da televisão e, agora, a da eletrônica faz.
Então o conceito de midiatização assume importância no momento em que consideramos que a preponderância dos meios de comunicação chega a um ápice?
M.S. – Exatamente. A consciência de que eles assumem um solo social, e que esse solo é feito de informação. Quer dizer, tradicionalmente, com relação ao jornal e ao rádio, a informação é uma coisa que partia de rádio, jornal e revista para o público, com conteúdo. E a informação hoje, não; a informação é o próprio território onde você pisa. E isso não é um delírio teórico, porque com a eletrônica, com a internet, com as possibilidades que temos hoje de metaversos, de avatares, de uma realidade virtual por onde os jogos estão se movendo, essa turma está se movendo cada vez mais dentro disso. É claro que ele vai pisar no chão da casa dele, mas pode não ter mais tanta importância pisar no chão da casa dele. Ele está pisando noutro chão. É isso que é o acabamento da midiatização, é o acabamento no sentido de perfeição do sistema. Então, claro que a política é afetada, que a educação é afetada – estou agora interessado na educação –, esses modos de relacionamento são afetados. Mas a política, claramente.
Podemos pensar hoje que os games podem ser um recurso fundamental na educação?
M.S. – Os games são importantíssimos. A educação sempre lidou com a possibilidade dos jogos. Esses games, ao que eu saiba, estão ficando cada vez melhores. Nos games americanos, a história da Guerra Civil americana está perfeita, é muito boa. Agora, é claro, isso também vai alterar o modo de educar. Cada vez mais fica claro que a educação está de um lado e o aprendizado e o ensino estão de outro. Você pode aprender, ensinar e não se educar. Porque a educação é a entrada do sujeito na vida, é a iniciação do sujeito na vida. Todas essas tecnologias são fortes, são poderosas, no sentido de aprender e ensinar, mas elas não têm a socialização que a educação tradicional dá. Então existe uma crise dessa separação da educação, nessa distinção entre aprender, ensinar e educar.
Sendo assim, a própria universidade precisa ser repensada em termos de sua atuação, de sua formação?
M.S. – Não, eu acho que essa questão da educação como iniciação na vida é mais para os cursos abaixo da universidade. A universidade pode, sem duvida nenhuma, entrar de cara nessas tecnologias e ajudar no ensino. Há determinadas matérias, determinados assuntos, que são ensinados mecanicamente melhor do que por pessoas. Um engenheiro, por exemplo, pode ver, através de vídeos, toda a estrutura de um edifício, que antes não existia. Ele conhece, ele sabe a respeito da estrutura, mas ali, nos vídeos, ele está vendo, pode saber onde estão as pequenas falhas. Ou seja, isso veio para ajudar. Há uma margem grande de possibilidades de ensinar e aprender que são mecânicas, que são eletrônicas. Eu acho que isso é uma conquista. Agora, educação como iniciação para os jovens é outra coisa.