Nos últimos 250 anos, cerca de 1,5 milhão de espécies (vegetais, animais, fungos, micróbios) foram descritas e nomeadas pelos naturalistas. Esse número, no entanto, é apenas uma parcela da biodiversidade da Terra, que deve abrigar um total estimado entre 5 e 50 milhões de espécies. Cada espécie é composta por um número variável de populações locais, integradas por números igualmente variáveis de indivíduos. Para os propósitos deste artigo, vamos admitir que o planeta abrigue 30 milhões de espécies de seres macroscópicos (exclui os micróbios), cada qual composta por 100 populações, todas formadas por 1.000 indivíduos. No total, teríamos então 30 milhões de espécies, 3 bilhões de populações (30 milhões x 100) e 3 trilhões de indivíduos (3 bilhões x 1.000). Quer dizer, o número total de espécies estaria na casa dos milhões, o de populações na casa dos bilhões e o de indivíduos na cada dos trilhões.
Mas não poderíamos substituir as expressões milhões, bilhões e trilhões por algo, digamos, mais confiável? No artigo ‘Questão de bom senso ou mínimo de informação‘, publicado na edição nº 355 deste Observatório, Xikito Affonso Ferreira sugere algo justamente nessa linha: que os jornais usem cores em lugar de expressões como milhões, bilhões e trilhões. Segundo o autor, a idéia
Evitaria erros grosseiros verificados [nos jornais] com alguma freqüência em cifras, distâncias, medidas de área etc.
O problema é grave, mas cabe ressaltar que incompetência matemática não é propriamente uma exclusividade de repórteres e editores brasileiros. Nas palavras do falecido Carl Sagan,
A confusão entre milhões, bilhões e trilhões ainda é endêmica na vida diária, e rara é a semana que se passa sem uma dessas trapalhadas no noticiário de TV (em geral, uma confusão entre milhões e bilhões). Assim, eu talvez possa ser desculpado por perder algum tempo distinguindo: 1 milhão é mil milhares, ou o número 1 seguido de seis zeros; 1 bilhão é mil milhões, ou o número 1 seguido de nove zeros; e 1 trilhão é mil bilhões (ou, equivalentemente, 1 milhão de milhões), que é o número 1 seguido de doze zeros. (Sagan, C. 1998. Bilhões e bilhões. SP, Companhia das Letras, p. 14.)
Embora concorde com boa parte do que li no artigo de Xikito A. Ferreira, não vejo como a sugestão de usar cores de acordo com a ordem de grandeza dos números vá ajudar a resolver essa confusão. Quer dizer, não vejo como a adoção de um novo sistema de códigos – digamos, verde em vez de milhão(ões), amarelo em vez de bilhão(ões), vermelho em vez de trilhão(ões) e assim por diante – poderia abolir ou minorar a incompetência matemática de quem quer que seja. Ao contrário, penso que o problema perduraria e o resultado final seria igualmente confuso: verde quando deveria ser amarelo ou amarelo quando deveria ser vermelho.
Mal-entendidos
Além dessa questão nomenclatural – usar milhões quando o certo seria bilhões, ou vice-versa –, o artigo menciona um outro problema: as confusões que comumente surgem no momento em que jornalistas tentar converter unidades de grandeza. As dificuldades incluiriam, por exemplo, converter metros quadrados em hectares ou hectares em quilômetros quadrados, e vice-versa. Mais uma vez, entretanto, não se trata de um problema exclusivamente brasileiro. Nas palavras de um outro autor estrangeiro, o biólogo Stuart Pimm:
Na Inglaterra, quase todas as folhas caíram nos três meses do outono. Na Austrália, caíram folhas todos os meses, embora mais nos meses secos do que nos meses úmidos. Mesmo assim, as quantidades foram muito semelhantes: cerca de um quilograma de folhas secas e pequenos galhos por metro quadrado, ao longo do ano.
Para muitos leitores, a frase anterior parecerá perfeitamente trivial, mas não para a minha esposa, Julia. Ela é, em suas próprias palavras, metricamente incompetente. Para ela, como para a maioria dos americanos, britânicos acima de uma certa idade e alguns engenheiros da Nasa que enviam sondas a Marte, a frase deveria ser lida como cerca de 2 libras… por jarda quadrada. (Pimm, S. 2005. Terras da Terra. Londrina, Editora Planta, p. 7.)
Pimm faz referência às dificuldades que cercam a conversão de unidades de sistemas de medida distintos: nesse caso, a conversão de quilograma em libra (ambas unidades de massa) e metro quadrado em jarda quadrada (unidades de área). Como Xikito A. Ferreira ressalta em seu artigo, conversão é uma fonte de mal-entendidos particularmente freqüentes na imprensa brasileira, mesmo quando as unidades são do mesmo sistema – e.g., conversão de metro em quilômetro ou de metro quadrado em quilômetro quadrado. Ele finaliza seu artigo comentando programas de treinamento para profissionais da imprensa que estariam sendo ou poderiam vir a ser oferecidos pelas próprias empresas jornalísticas. Fiquei com a impressão de que esses programas representariam, entre outras coisas, uma tentativa de minorar problemas de má-formação profissional.
Preocupante
A exemplo de uma questão envolvendo percentuais, comentada anteriormente no artigo ‘Precisão ou imperícia numérica?‘, estamos mais uma vez diante de um problema de formação básica. Percentuais, números fracionários, ordens de grandeza, unidades de medida e outros temas matemáticos que estão na origem de inúmeros erros e mal-ententidos cotidianos são todos assuntos tratados no Ensino Médio, quando não no Ensino Fundamental. Ora, não seria então o caso de exercitar durante a graduação um pouco da bagagem matemática trazida pelos alunos? Ou durante a graduação nossos estudantes de Jornalismo são estimulados a desaprender boa parte daquilo que aprenderam em seus estudos pré-universitários?
O leitor não-familiarizado com o assunto pode estranhar estas perguntas, mas durante os anos de estudo universitário é perfeitamente possível cursar disciplinas cujo conteúdo seja equivalente ou mesmo inferior ao conteúdo de disciplinas cursadas no Ensino Médio. (Passei por isso em minha graduação, mais de uma vez.) E isso não ocorre apenas em faculdades particulares de quinta categoria, dessas que proliferam em qualquer esquina; estou me referindo a universidades públicas.
Não vejo problema no fato de uma empresa jornalística vir a oferecer programas de treinamento ou mesmo cursos de aperfeiçoamento aos empregados (repórteres, repórteres-fotográficos, editores etc.), mas é preocupante quando o conteúdo dessas atividades corresponde ao que deveria ter sido aprendido no Ensino Médio ou mesmo no Ensino Fundamental. Matemática avançada pode ser um tesouro para poucos, mas as noções elementares da disciplina deveriam ser familiares a todos aqueles que sabem ler e escrever.
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Biólogo, autor de Ecologia, evolução & o valor das pequenas coisas (2003)