Infelizmente, nem a ministra que se ocupou da calcinha e do sutiã de Gisele Bündchen, de repente assuntos de Estado e não apenas de moda ou mais especificamente de lingerie, nem suas colegas de outros ministérios lançam mão da presença feminina no governo da presidente Dilma Rousseff para cuidar de outros temas, igualmente inerentes à condição feminina. Estão preocupadas com as celebridades, como identificou Ligia Martins de Almeida em artigo publicado neste Observatório (ver “O governo, a mídia e a calcinha”). Ou, mais ainda, com determinadas “celebridades”.
Assim, a titular da Secretaria de Políticas para as Mulheres pisou na bola, para usar uma boa metáfora do futebol, e seu gesto pode ser pedra de tropeço no caminho para ganhar as classes médias, além, naturalmente, do gesto desnecessário.
Há outras prioridades de proteção aos clientes dos produtos anunciados por Gisele Bündchen, que, aliás, é atriz e modelo que não precisa de tutela nem de proteção de governo algum. Quem precisa, são seus eventuais fregueses.
Estado leigo
Por exemplo: se alguém comprar aquelas peças com cartão de crédito e precisar depois financiar o saldo restante, vai pagar juros abusivos. E contra os juros, ministros ou ministras, nenhum deles acha imorais ou atentatórias a nada as taxas cobradas. Se comprar aquelas peças numshopping center, antes terá de pagar o estacionamento enquanto o carro lá estiver. E que diz o governo sobre o que é cobrado nesses estacionamentos? Nada,
O povo paga para comprar. Para quem quer incentivar o consumo para sair da crise, um dado preocupante. Antes de comprar, paga-se para estacionar, gasta-se no pedágio para lá chegar, paga-se uma das gasolinas mais caras do mundo para movimentar o carro que leva o freguês à loja etc.
Se está em questão a condição feminina, eis outra pauta para as ministras. A menina Albertina Berkenbrock, aliás tão bonita como Gisele Bündchen, já beatificada pelo papa Bento 16, e prestes a ser canonizada, não tem recebido, nem do anterior, nem do atual governo, atenção alguma. Já Cesare Battisti, condenado com abundância de provas no Judiciário italiano, é tratado como inocente no Brasil. Combatendo a Máfia, os juízes italianos pagaram com a vida a aplicação das leis. Mas, ao enfrentarem o governo e o Estado brasileiros, encontraram dois inimigos aparentemente invencíveis, que movem céus e terras para proteger um criminoso, fazendo o Brasil como nação passar uma vergonha danada no exterior.
Por que a ministra, tão preocupada com a calcinha e com o sutiã de Gisele Bündchen, já protegida pelo prestígio nacional e internacional que alcançou com muito talento e tantos trabalhos interessantes, não dá uma olhadinha na história de Albertina Berkenbrock? Afinal, conquanto o Estado seja e deva ser leigo, as autoridades não perdem tempo de tirar proveito de missas e de outras cerimônias tão comuns no maior país católico do mundo, do qual são atualmente ministras.
Duas vezes
Albertina Berkenbrock foi assassinada em 15 de junho de 1931, aos doze anos, defendendo a dignidade da mulher, embora fosse ainda adolescente, resistindo a estupro. Sua canonização terá importância ainda maior do que a beatificação, e repercussão imorredoura.
No Brasil profundo, ainda hoje falto de escolas, Albertina teve formação cristã, recebida da família, aprendeu sobretudo a ser solidária com os filhos dos vizinhos, até mesmo os filhos daquele que a matou, foi pessoa de agradável convívio, aplicada aos estudos, e seu professor e catequista deu depoimentos comoventes sobre a doçura da menina, em casa, como na escola, na igreja, na rua.
Mas Albertina Berkenbrock não está na mídia. E o fato de não estar, às vésperas da canonização, já é sintoma de que privilegiamos na mídia e também no Estado outras “celebridades”.
Já que a ministra pôs os olhos numa gaúcha bonita para proibi-la, que tal a redenção? Que dê uma olhada na catarinense que já morreu duas vezes. Uma, pelas mãos do cruel assassino; outra, pela omissão de autoridades como as que temos.
***
[Deonísio da Silva é escritor, doutor em Letras pela Universidade de São Paulo, professor e um dos vice-reitores da Universidade Estácio de Sá, do Rio de Janeiro; autor de A Placenta e o Caixão, Avante, Soldados: Para Trás e Contos Reunidos (Editora LeYa)]