Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Mistificação, fantasia e irresponsabilidade

O futuro das relações diplomáticas brasileiras com os nossos vizinhos, e em todo subcontinente como um todo, passará por decisivas mudanças nos próximos anos.

A afirmação, ou ‘reafirmação’, brasileira por uma liderança continental começa, aos poucos, a mobilizar as discussões nacionais. Nunca, na história recente do país, discutiu-se tanto o papel, relevante ou não, do Brasil no cenário internacional. Infelizmente, como tantos outros assuntos, este também vem sendo tratado com a habitual condução ‘enviesada’ da grande imprensa.

Poucos anos atrás, a discussão deste assunto era sobre a condução ideológica do Itamaraty, das alianças comerciais esdrúxulas e da ‘megalomania’ do presidente na sua busca por uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU.

Evidentemente, sobravam ainda farpas, bem espinhosas, para o embaixador Pinheiro Guimarães, considerado, nas redações, como verdadeiro ‘arquiteto’ desta guinada ‘irresponsável’ à esquerda e jogando, perigosamente, toda uma tradição diplomática brasileira (conciliadora e universal) para uma linha de frente inconstante e perigosa das questões prementes da diplomacia mundial.

Ameaçador e perigoso

Considerando a radicalização, sem precedentes, das discussões políticas no país, entre oposição e governo, e o uso, a meu ver bem consciente, das redações como instrumento político partidarizado, seria uma questão de tempo para que as relações entre Brasil x Venezuela fossem ‘tocadas’ por este triste fenômeno. E, de roldão, todo o papel da diplomacia brasileira na América do Sul.

Não que o presidente venezuelano fosse figura menor de nossos comentaristas. Seu lado histriônico, caudilho, sempre foi matéria-prima farta para nossos jornais. Sua ‘revolução’ bolivariana sempre fora vista com reservas. E, muitas vezes, traçavam-se analogias (saborosamente levianas, para dizer o mínimo) entre o presidente Lula e Chávez, desconsiderando as diferenças brutais entre ambos, seus partidos e seus respectivos países.

Após os sucessivos fracassos com as crises internas, incapazes de revirar ou subverter o apoio popular inconteste ao presidente brasileiro, sempre neste esforço descomunal de procurar crises e tensões, arranja-se uma nova, potencialmente perigosa e irresponsável: a de uma futura disputa armamentista e o crescer de uma tensão entre o Brasil e a Venezuela.

Nas últimas semanas, uma revista de circulação nacional vem publicando matérias onde se levanta o potencial risco de um conflito entre os dois países. A revista Época, inclusive, manipulou a imagem de Chávez numa de suas capas, fazendo-o parecer mais ameaçador e perigoso.

Jornalismo presunçoso e histérico

Análises comparativas, infogramas entre as duas forças são mostrados e espalha-se a dúvida quanto ao caráter dos investimentos bélicos que a Venezuela vem fazendo.

Quase todos os especialistas, seja no campo militar, seja no diplomático, fazem coro, uníssono, aos editoriais. Subitamente nos vemos envoltos numa espécie de ‘guerra fria’ latino-americana, estimulada, pelo parecer das redações, por uma disputa entre egos inflados e irresponsáveis (de Lula e Chávez) pela supremacia política da região.

Ora, não precisamos acordar Clausevitz do sono eterno para percebermos o absurdo da interpretação dos fatos recentes.

A Venezuela adquiriu recentemente cem mil (100.000) rifles de assalto Kalashnikov, ao meu ver, para armar a sua ‘guarda bolivariana’, precavendo-se de uma nova insurreição militar em sua própria força, ou, também, contra uma invasão (igualmente improvável) dos Estados Unidos. Não se faz uma guerra moderna com rifles de assalto. Além disso, aproximadamente 30 SU-37 russos e algumas corvetas espanholas.

As forças armadas venezuelanas não ultrapassam cinqüenta mil homens (50.000). Para efeito de comparação, as armas brasileiras têm quase o triplo do efetivo. E, mesmo considerando o atraso tecnológico e sucateamento de nossas armas, considerar um conflito eminente entre os dois países não é somente um exercício fantasioso e ridículo. É algo mais sério… É estimular tensões inexistentes entre dois países em nome de um jornalismo presunçoso e histérico.

Guerrilheiros e traficantes

As definições estratégicas militares brasileiras, por sigilosas que sejam (com toda razão), não devem considerar a Venezuela como inimigo potencial, certamente. A Argentina fora, até os anos oitenta, o inimigo natural num conflito em larga escala, imaginado nas academias militares e simulado em jogos de guerra em ambos os países.

Nas últimas décadas, contudo, mudou consideravelmente a postura dos militares brasileiros quanto às ameaças externas. A transferência de unidades militares de outros pontos do país para a Amazônia, a criação de unidades de ataque e transporte aéreo ligadas ao exército (uma antiga reivindicação, aliás) e a ocupação militar e institucional de um imenso território não habitado do norte do país são, sim, os grandes objetivos estratégicos militares brasileiros.

A ameaça ao nosso território seria, portanto, do ‘povoamento’ de um povo fronteiriço numa região qualquer, despovoada. Além disso, o estabelecimento de pontos de apoio em nosso território de guerrilheiros e traficantes de outros países é uma preocupação óbvia, e natural, dos militares. Uma intervenção de uma potência militar supra-continental também não é descartada.

O ‘risco Chávez’

Num terreno tão acidentado quanto a selva (e só ela serve de terreno entre ambos os países – Brasil e Venezuela), a existência de grandes unidades militares, brigadas blindadas ou mesmo de caças e interceptadores, tornam-se, pois, inúteis, e a literatura militar já tem vasto material documentado explorando a fragilidade de tais recursos frente a um terreno tão difícil.

O clamor da tropa por mais investimentos vem, antes de tudo, da reposição de equipamentos e recursos após anos de sucateamento. Além disso, da inserção brasileira no cenário internacional e na necessidade, certamente vindoura, da responsabilidade do país como nação importante e apta a estabelecer planos de paz e de guarda de territórios devastados por conflitos, seguindo políticas globais definidas pelo conjunto de nações associadas às agências internacionais.

Certamente, e por último ignorado pelos jornalões, talvez temerosos de parecerem eles patrocinadores de alguma teoria terceiro-mundista qualquer, o temor justificado da intervenção de uma parcela significativa do território nacional por uma potência militar, motivada, entre outros motivos, pelas riquezas minerais e energéticas a que dispomos.

Certamente, o ‘o risco Chávez’, na escala de importância da inteligência militar e da diplomática brasileiras, deve ter o mesmo valor que o conteúdo das matérias publicadas recentemente sobre o assunto.

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Engenheiro