A Federal Communications Comission (FCC), a agência reguladora do mercado norte-americano de mídia, decidiu, na quarta-feira (19/12), recuar ainda mais: abriu mão de cláusulas que há mais de 30 anos garantiam a pluralidade da oferta de informações para os cidadãos.
Por 3 votos a 3, a agência resolveu que nas principais cidades norte-americanas as empresas de mídia poderão ser proprietárias simultaneamente de jornais, emissoras de rádio e TV. A proibição da ‘propriedade cruzada’ (a única barreira efetiva contra a furiosa concentração da mídia) ficou visivelmente abalada.
Nossa imprensa não se interessou pelo assunto: o gelo foi quebrado pela Folha de S. Paulo em despacho de Sérgio Dávila, correspondente em Washington [ver aqui]. O Estado de S. Paulo, que costumava manifestar-se com veemência contra os cartéis e conglomerados, desta vez não abriu a boca, mas comeu mosca: perdeu uma bela oportunidade para discutir o perigoso processo de concentração da nossa imprensa.
Conselho de Comunicação Social
O vale-tudo não levou tudo: a nova norma da FCC manteve algumas salvaguardas e estabeleceu que nos 20 maiores mercados norte-americanos a liberalização só ocorrerá caso estejam em funcionamento pelo menos oito empresas de proprietários diferentes. Além disso, a compra de uma emissora de TV só será autorizada caso não seja uma das 4 com a maior audiência.
Apesar do evidente retrocesso no sistema midiático dos EUA, há um dado que não pode ser ignorado. O baluarte mundial do capitalismo e do privatismo mantém intocada sua agência reguladora numa área tão sensível que mereceu a primeira emenda à Carta Magna – a imprensa. A FCC vem afrouxando progressivamente seu ânimo regulador num momento em que é mais necessário; no entanto, a república norte-americana considera indispensável manter intacta a entidade reguladora.
Nunca é demais lembrar que a Constituição brasileira de 1988 previu um mecanismo que, embora sem poder efetivo, tem condições de atuar, por meio do Senado, como um fórum nacional: o Conselho de Comunicação Social. A instalação do órgão auxiliar do Senado demorou 14 anos graças à ação deletéria do todo-poderoso senador José Sarney – ele mesmo dono de um conglomerado regional.
Saco de batatas fritas
Presidido pelo jurista José Paulo Cavalcanti Filho, o CCS teve um primeiro mandato extremamente promissor (2002-2004), razão pela qual os mandatos dos conselheiros não foram renovados. O cadáver do CCS foi então entregue ao imortal Arnaldo Niskier, assecla de José Sarney, que providenciou seu enterro imediato.
Apesar do recuo da FCC, o assunto não está encerrado. O correspondente da Folha informa que diversas entidades norte-americanas de direitos civis pretendem contestar judicialmente a decisão da agência. O pluralismo sofreu um duro golpe, mas tão cedo não sairá da agenda norte-americana.
O silêncio do Estadão a respeito do reforço aos monopólios nos EUA ocorreu cinco dias depois da publicação de um surpreendente texto na sua Página 2, ‘Quanto poder tem o Quarto Poder?‘, assinado pelo filósofo Paulo Ghiraldelli Jr. (14/12).
Sob o pretexto de comentar dois textos recentes do filósofo Jürgen Habermas relacionados com suas angústias sobre o futuro da imprensa, Ghiraldelli diz o seguinte:
‘O temor de Habermas é em relação à maneira como os grandes conglomerados empresariais sem rosto se aproximam das famílias tradicionais que, durante anos, de maneira até heróica, sustentaram o bom jornalismo. A venda de grandes jornais com tradição de informação séria a companhias acostumadas a transformar tudo em saco de batatas fritas é preocupante para um filósofo inteligente como ele.’
Amargar o ‘day after’
Não está claro se a metáfora do ‘saco de batatas fritas’ é de autoria de Habermas ou do discípulo, Ghiraldelli. Mais apropriada seria uma referência ao ‘saco de pipocas’ de modo a evidenciar a voracidade do conglomerado de entretenimento News Corporation, de Rupert Murdoch, dono da Fox Films, que acaba de abiscoitar o categorizado Wall Street Journal.
Não há dúvidas de que o alvo das preocupações do articulista é o próprio Estadão, cuja resistência à ditadura militar ocupa dois enormes parágrafos no mesmo texto.
Resta saber se a publicação do artigo foi casual ou pode ser considerada como uma salva de advertência do jornal dos Mesquita para barrar a eventual sofreguidão de algum ‘conglomerado sem rosto’:
‘Ao contrário da estatização do jornalismo de qualidade, Habermas está propondo a busca de garantias mínimas de mercado para este jornalismo…A idéia básica está lançada. Ou ampliamos a chance de mercado da imprensa liberal tradicional, que prima pela informação, ou vamos amargar o ‘day after’.’
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Jornalista