Boate, do francês boîte, é caixa, ambiente fechado, casa noturna. Nas antigas boates, o escuro era aconchegante, quem se divertia eram os adultos, geralmente endinheirados. Similares modernos, muito escuros, negros, chamam-se discotecas, danceterias, frequentadas exclusivamente por jovens, com dinheiro contado. Para rentabilizar o investimento as boates precisam estar superlotadas. É a essência do negócio dessas caixas pretas.
Para Paulo Prado, em Retrato do Brasil, somos um povo triste. Tiranos, tiranetes e seus comissários nos querem alegres, saltitantes, festeiros – o culto ao prazer é uma forma de domesticação.
Resultado: não sabemos lidar com o luto. A última vez em que nos metemos numa guerra foi há cerca de setenta anos (1942), portanto há duas gerações. Estamos a salvo de terremotos, tsunamis e as catástrofes climáticas, além de recentes, ceifam majoritariamente os pobres e carentes. Por eles não se põe a bandeira a meio-mastro.
Os brasileiros acordaram na manhã de domingo (27/1) com os relatos dantescos do que acontecera durante a madrugada na boite Kiss, Rua dos Andradas, centro de Santa Maria, Rio Grande do Sul. Neste caso a comparação de desempenhos é secundária, prematuro teorizar sobre a cobertura da morte quando ela ainda está à espreita. Algumas percepções podem ser registradas à margem, nada que já não tenha sido apontado em outras circunstâncias (ver abaixo).
Importa que nos últimos dez dias, na temporada mais festeira e hedonista do ano, alternamos as três centenas de tragédias singulares, personalizadas, com uma tragédia plural, brutal, massiva, autêntica chacina – dolosa ou culposa – surda , anônima, intensa, institucional.
Não sabemos nos enlutar, o verbo é estranho, a sensação mais ainda. Condoer-se é inconfortável. O que sobrou da dor é justamente o seu antídoto – revolta e indignação.
Atenção, material inflamável.
Fatalidades só ocorrem em lugares ou situações onde não se imagina que possam ocorrer. Esta distração tem nome e castigo. Com os olhos ainda marejados e as almas machucadas, o estado de espírito que começou a aflorar depois de iniciado o inquérito policial tem ingredientes que soam familiares. Imprudência, negligência, incúria, irresponsabilidade, são palavras-delitos já incorporadas ao nosso cotidiano. Com elas vêm as imagens de propina, chantagem, corporativismo e corrupção.
O horror à imoralidade, e consequentemente à impunidade, não é uma abstração filosófica, é um dado concreto, apartidário ou suprapartidário, porque o brasileiro vem sendo agredido em grande parte dos seus direitos – como cidadão, consumidor, cliente, paciente e, sobretudo, como eleitor.
Em algum momento a dor converte-se em raiva e a solidariedade em reação. O que era difuso e confuso, por associação de ideias converte-se em cobrança, exigência, protesto.
Junto à imagem dos jovens heróis que salvaram tantas vidas começa a armar-se a necessidade de um zorro, o xerife, o vingador que levará os suspeitos à barra dos tribunais e depois ao cárcere.
Mesmo sepultados, os mortos de Santa Maria têm ainda muito a dizer.
Desempenhos
Os portais noticiosos na internet mostraram-se absolutamente inúteis e ineficazes, não serviram para notícias quentes nem para análises ou opiniões veementes. Distantes e insuficientes. Como se a catástrofe tivesse acontecido na Islândia ou no Mali.
Não confundir jornalismo pela internet – nota zero – com comunicação digital (nela compreendidas as redes sociais) – nota cem. Apesar das colossais deficiências da nossa telefonia digital, serviu para avisar, contatar, pedir e prestar socorro.
As emissoras de rádio, primeiras a despertar, desapareceram tão logo entraram em ação os canais noticiosos de TV com o seu formidável potencial informativo. Caso da GloboNews. A TV aberta, cada vez mais fatiada pelo entretenimento, esfriou. Já houve um tempo em que para saber o que acontecia na rua era indispensável ir para casa e sintonizar as redes de TV. Substituídos pelos canais fechados, all news.
Na esfera dos impressos: os três jornalões, partiram-se em dois grupos: os paulistas (Folha e Estado), forçando uma aparência nacional, despejaram o noticiário de Santa Maria nos cadernos ditos locais. Funcionou nos primeiros momentos da tragédia, mas à medida que as grandes cidades – sobretudo São Paulo, onde são editados e circulam – começaram a tomar drásticas medidas de fiscalização, o sofrimento pelo outro foi sendo varrido e substituído por um egocentrismo local.
O Globo fez bem em recusar a cadernização burocrática, absurda, e absorveu todo o noticiário no primeiro caderno. O jornal trepidou de emoção e indignação de ponta a ponta.
A segmentação é um cacoete que já deveria ter sido desativado. Inclusive em emissoras de rádio – em certos horários os(as) âncoras parecem viver em outro mundo.
As semanais Veja e Época anteciparam a chegada às bancas, perceberam que ainda há muito espaço para o jornalismo de qualidade.
Na avalanche de pensatas, uma entrevista do psicanalista Tales Ab’Sáber à repórter Mônica Manir (Estadão, domingo, 3/2, caderno “Aliás”, pp 4-5) terá que ser desenvolvida no momento apropriado. Com o título “A balada do nada”, Ab’Sáber constata: “Jovens festejam na noite o fato de não terem o que festejar”.