Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Mudanças na cultura midiática latino-americana

As provocantes mudanças na cultura midiática latino-americana e a relação da comunicação e governos são tratadas nesta entrevista. ‘Essas modificações que começam a aparecer no cenário latino-americano se devem basicamente à ação de governos progressistas’, diz Dênis de Moraes, doutor em Comunicação e Cultura.

Que a cultura midiática latino-americana está mudando, não há dúvidas. Mas é preciso salientar que há mudanças extremamente significativas acontecendo, enquanto que, em outros países, a mudança ainda é tímida. ‘Essas modificações que começam a aparecer no cenário latino-americano se devem basicamente à ação de governos progressistas, particularmente os governos da aliança bolivariana das Américas: Venezuela, Equador e Bolívia, que entendem que a comunicação é uma questão estratégica para o desenvolvimento social e econômico e têm procurado interferir mais no sistema midiático, no sentido de aumentar a variedade dos conteúdos e das fontes emissoras’, diz o professor Dênis de Moraes. Ele fala ainda sobre a relação entre comunicação e governabilidade, crise das indústrias e conselhos de comunicação. A conversa foi realizada por telefone.

Dênis de Moraes é mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde também realizou doutorado em Comunicação e Cultura. É pós-doutor pela Universidade Federal de Minas Gerais e pelo Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, da Argentina. É professor da Universidade Federal Fluminense. É autor de, entre outras obras, O concreto e o virtual: mídia, cultura e tecnologia (Rio de Janeiro: DP&A, 2001) e Cultura mediática y poder mundial (Buenos Aires: Grupo Editorial Norma, 2006).

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Foucault dizia que não existe o poder, mas existem, sim, aqueles que querem ser dominados. Qual a relação que o senhor faz entre o poder e a cultura midiática presente na América Latina, hoje?

Dênis de Moraes – Eu acho que a cultura midiática, tanto na América Latina quanto no mundo em geral, apresenta uma série de características comuns e convergentes. A primeira delas é o que eu defino como midiatização da vida social. Todos os espaços de representação de anseios e aspirações parecem ter se transferido por ação ideológica dos meios de comunicação para telas e monitores. Isso significa que só adquire verdadeira visibilidade social aquilo que os meios de comunicação se incubem de transmitir. Significa também que as outras esferas de representação de interesses passam também a entrar num processo de esvaziamento de sua força junto à opinião pública. Eu me refiro à escola, às associações sociais, ao poder legislativo, que continuam manifestando suas posições, aglutinando interesses, mas não têm o mesmo poder de penetração e de interferência social do que os meios de comunicação. Trata-se de uma distorção perigosa, na medida em que os meios de comunicação se apresentam diante da coletividade como um âmbito de representação da vontade geral, como se eles tivessem a capacidade de resumir tudo aquilo que a sociedade deseja e aspira.

Trata-se de uma manobra ideológica muito poderosa, muito incisiva e que tem como objetivo: 1) ajudar a consolidar a hegemonia do mercado como a esfera de organização societária, ou seja, o mercado elevado à potência máxima; 2) Trata-se de uma tentativa de colocar os meios de comunicação, que são privados, fora do alcance de controles públicos democráticos. Eu me refiro, especificamente, aos meios de comunicação que têm concessões de rádio e televisão e que não desejam se submeter a controles, regras e normas públicas. Isso é uma deturpação muito perigosa também, porque se tratam de canais que pertencem à sociedade e não aos conglomerados midiáticos. Mas, ao se apresentarem como esfera de tradução da vontade geral, eles tentam se colocar fora do alcance de qualquer tipo de controle público-democrático. Como se tivessem uma autonomia tão peculiar, como se fossem a única esfera social, que não precisassem prestar contas à sociedade daquilo que fazem.

Tem que prestar sim, porque são concessionários de licenças. Esse é um exemplo bastante eloqüente do tipo de cultura midiática que nós temos. Trata-se de uma cultura absolutamente singular porque controlada, formulada, executada por meios que querem se colocar fora do alcance da sociedade, acima de qualquer tipo de controle. E fabricam, com uma velocidade espantosa, um volume desproporcional de informações e imagens a pretexto de que isso ampliaria a diversidade, quando na verdade nós sabemos muito bem que, de fato, há um aumento exponencial dos conteúdos transmitidos socialmente. Porém, as fontes de transmissão continuam cada vez mais concentradas nas mãos de poucas empresas que têm um poder absurdo de definir tudo aquilo que a sociedade pode ouvir, ver e ler.

Para o senhor, de que forma a comunicação se relaciona com as constantes mudanças no governo e as crises políticas na América Latina e como ela afeta a democracia?

D.M. – Na América Latina, os esforços e movimentos que estão sendo feitos para descentralizar e aumentar a diversidade cultural nos meios de comunicação se processam completamente fora do sistema midiático. Nós sabemos que o sistema midiático é controlado por grandes empresas privadas. E esse sistema não quer que haja modificação alguma no cenário. Essas modificações que começam a aparecer no cenário latino-americano se devem, basicamente, à ação de governos progressistas, particularmente os governos da aliança bolivariana das Américas: Venezuela, Equador e Bolívia, que entendem que a comunicação é uma questão estratégica para o desenvolvimento social e econômico e têm procurado interferir mais no sistema midiático, no sentido de aumentar a variedade dos conteúdos e das fontes emissoras. Esses governos têm procurado modificar marcos-regulatórios, apoiar, através de fomentos, parcerias e acordos bilaterais ou multilaterais, a produção nacional independente, sobretudo do audiovisual.

Os referidos governos têm apoiado também meios de comunicação comunitários e alternativos, seja através de novas leis, que regulamentem, por exemplo, rádios comunitárias e, também, desonerando cooperativas, pequenas e médias empresas de comunicação para que a produção fora do mercado cresça e possa oferecer novos canais de difusão não submetidos aos crivos dos grandes conglomerados. Trata-se de uma ação alternativa, no sentido de restabelecer a influência do poder público sobre o sistema de comunicação. E nós também assistimos em outros países, sem a mesma intensidade desses três, esforços para modificar leis, alterar sistemas de fomento, exercer novos controles sobre empresas concessionárias de rádio e televisão, fortalecer os sistemas estatais de comunicação, lançar editais de fomento para o cinema, sempre apoiando a produção independente e não-midiática no sentido de não pertencer às grandes corporações. Nesse sentido, eu acredito que a América Latina vive um momento excepcional, porque, pela primeira vez na sua história, há uma reação institucional em vários países contra as distorções de um sistema de comunicação cada vez mais concentrado e oligopolizado, evidenciando a consciência de determinados governos de que não é possível ficar de braços cruzados diante da onipotência midiática. Infelizmente, no nosso país, assistimos a um processo de letargia do governo federal nessa matéria, mas o cenário latino-americano é bastante promissor.

Como o senhor vê a crise das indústrias culturais no mundo e como essa crise afeta os meios de comunicação latino-americanos?

D.M. – As indústrias culturais fazem parte do modo de produção capitalista, de forma que um dos traços constitutivos desse modo de produção é que ele se depara sempre com crises internas e tem uma extraordinária capacidade de reprocessá-las e, assim, conseguir se reestruturar e seguir adiante. As indústrias culturais apresentam algumas evidências de crise, sobretudo no sentido do esgotamento dos mercados dos países mais industrializados. Entretanto, as corporações desses países entenderam que elas precisam buscar outros mercados através da economia de escala que internacionalizaram suas produções, seus sistemas de difusão, suas estratégias mercadológicas e conseguem enfrentar a crise em seus países de origem, obtendo lucros em países periféricos da América Latina e da Ásia.

De modo que eu não vejo uma crise das indústrias culturais que possa afetar a sua hegemonia no mercado de informação e entretenimento. Eu vejo crises que têm sido enfrentadas sucessivamente por meio de reestruturações empresariais e novos planos mercadológicos com relativo êxito. Basta citar, por exemplo, o caso das grandes corporações estadunidenses que, diante da saturação do mercado nacional, conseguiram, nas últimas décadas, resultados verdadeiramente extraordinários nos demais continentes, compensando, portanto, o esgotamento das possibilidades de crescimento do mercado interno.

Com relação ao mercado de mídia, penso que esse cenário se reproduz com uma impressionante coincidência: as principais corporações de mídia operam, hoje em dia, em escala absolutamente planetária. São grandes conglomerados que têm interesses e exploram uma série de setores tornados convergentes pela digitalização e conseguem atuar em parcerias com aliados regionais e locais desenvolvendo um processo de mais valia, extremamente insidioso e competente, porque distribui para mais de 200 países os mesmo produtos que são elaborados nos estúdios e nos centros de produção das matrizes, obtendo ganhos variados com cd’s, dvd’s, desenhos animados, filmes, etc. Também penso que não há crise tão violenta que possa colocar em risco a posição hegemônica das indústrias de comunicação e cultura.

Pensando na perspectiva de que todos os jornalistas são, antes de tudo, comunicadores sociais, como o senhor analisa o episódio do jejum de Dom Cappio e a movimentação que essa atitude gerou nos movimentos sociais no Brasil, em relação, principalmente, à luta contra a transposição do Rio São Francisco, e a cobertura (ou não cobertura) da mídia sobre esse fato?

D.M. – Eu creio que Dom Cappio teve um gesto de bravura, de consciência da cidadania e de compromisso com o Brasil. Foi um gesto extremo, que procurou chamar a atenção da nação para a controvertida transposição do Rio São Francisco. De fato, a cobertura midiática foi muito aquém do que o caso exigia e que também a gravidade do gesto do bispo reclamava. Isso tem a ver, evidentemente, com os interesses econômicos que estão em jogo no projeto de transposição das águas do Rio São Francisco. Sabemos que há, em vários aspectos, uma convergência de interesses entre as grandes corporações de mídia e os setores econômicos hegemônicos. Provavelmente, há convergências também no caso desse projeto, como também há uma série de interesses compartilhados entre as organizações de mídia e o governo Lula. O tratamento dado ao jejum do bispo é um tratamento de controle.

Não se podia deixar de noticiar um gesto extremo. Ao mesmo tempo, não se ampliou o debate sobre a transposição. Se pensarmos bem, até hoje essa questão parece nebulosa, fora de um conhecimento público mais amplo. O fato de ter existido audiência, como o senhor Ciro Gomes costuma dizer sempre que esse assunto vem à tona, não quer dizer que a sociedade, como um todo, tenha se esclarecido e tenha fixado uma posição a respeito. Se o governo Lula tem alguma dúvida, porque ele não utiliza maioria parlamentar para aprovar uma proposta de referendo para que a população se manifeste sobre a transposição? Sobre esse assunto quem melhor traduziu uma posição justa e progressista, além de Dom Cappio, foi a atriz Letícia Sabatella, que enfrentou, diante dos holofotes e dos microfones da mídia, os representantes do governo federal em pleno Congresso Nacional, inclusive o senhor Ciro Gomes. E a carta que ela escreveu e que foi tão pouco difundida pelos meios de comunicação fixa muito bem o total descompasso nesse caso entre os interesses estratégicos do governo e de grupos econômicos e a posição de ambientalistas e de entidades regionais a respeito do Rio São Francisco.

Para o senhor, quais são as possibilidades e os limites dos conselhos de comunicação social hoje?

D.M. – O Brasil tem um Conselho de Comunicação Social criado pela Constituição de 1988, que teve no saudoso doutor Ulisses Guimarães o seu grande expoente. Esse conselho praticamente não existe mais, deixou de ser do conhecimento público. Até onde sei, não tem se reunido com freqüência e a sua influência como órgão assessor do congresso nacional é uma influência muito pequena e sem ressonância. Atribuo isso ao desinteresse dos quatro últimos governos em fazer avançar medidas que contribuam para a democratização da comunicação do país. Digo isso porque a composição atual do conselho nacional de comunicação social, segundo análises que foram feitas por especialistas e pesquisadores, é a mais conservadora de toda a recente trajetória do conselho. Isso mostra claramente que não há um interesse governamental e do próprio congresso em prestigiar esse órgão como uma esfera de debate dos poderes públicos no campo da comunicação. Digo isso com pesar, porque essa foi uma luta importante das entidades que defendem a democratização dos meios de comunicação no país.