Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Muito longe da “pacificação”

Embora os números sejam parecidos (1.800 no subúrbio carioca, 2.160 na arrasada nação caribenha), há pelo menos três grandes diferenças entre os efetivos das Forças Armadas brasileiras que zelam pela segurança pública no Morro do Alemão e no Haiti: os salários, o grau de preparação e a convivência com o tráfico de drogas, que existe aqui como prática cotidiana e, se existe lá, tem dimensão marginal.

No Alemão, apesar da “conquista” celebrada em prosa e imagens (“O Dia D da guerra ao tráfico”, manchetou dramaticamente o Globo), os soldados convivem com o tráfico, atividade comercial ilegal que se realiza sem restrição, como em áreas onde foram instaladas UPPs, Unidades de Polícia Pacificadora.

O nome das UPPs foi escolhido com extrema competência. O Estado brasileiro, por sua ramificação policial fluminense, garante a paz para vendedores e compradores. Talvez seja mais sensato do que expor a população local e adventícia à truculência de traficantes, paramilitares e policiais. E a sujeição dos moradores, móvel principal das ações, fica garantida.

Da pacificação à tirania

O mais provável é que as UPPs passem a ser o polo dominante das tiranias locais. É de se prever que, onde se instalaram, suplantem traficantes e milícias na arregimentação de eleitores. Afinal, é nesse terreno – com intensa e extensa participação da mídia − que se opera precipuamente a sólida articulação impeditiva do controle sobre o tráfico, da erradicação de milícias e do combate à corrupção policial.

É difícil achar, no Rio de Janeiro, candidatos que possam citar parcelas significativas de eleitores seus totalmente isentas de ligação com o establishment criminoso local. Há uns poucos vereadores, deputados estaduais e deputados federais que se elegem à margem das redes de bandidagem. O mesmo não se pode dizer dos candidatos a senador, prefeito, governador e presidente da República. É mais difícil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que encontrar quem deles possa se orgulhar de não ter feito “dobradinha” com caciques locais incursos em algum artigo do Código Penal.

A múltipla presença do Estado

Sempre foi falsa a tese de que o problema em favelas e demais bairros pobres é a “ausência” do Estado. O Estado está presente de diferentes maneiras, mas não para cumprir apenas, às vezes nem principalmente, as finalidades presumidas por pessoas de bem e indivíduos de boa vontade. O Estado está presente em serviços de educação (de má qualidade, como na maioria dos bairros), saúde (inclusive vacinações e combate a epidemias), abastecimento de água (não em todos os casos), fornecimento de energia (o “gato” está computado nos custos das distribuidoras, glosados pelo governo), organização (ou desorganização) de transportes e insegurança pública.

Esgotamento sanitário e coleta de lixo são dois itens débeis da cadeia, embora já tenha sido muito pior. Não há leis de silêncio em vigor (o que se aplica também a redondezas de igrejas, bares e outros estabelecimentos barulhentos, em bairros “do asfalto” onde haja boa clientela). O número de viúvas e órfãos é mais elevado do que na média da cidade e do estado, mas não é objeto de preocupação específica das autoridades.

Insegurança rende mais

Como escreveu em dezembro de 2010 o professor da UFRJ Marcelo Lopes de Souza (“A reconquista do território”),

“…seja pelas incursões da polícia, seja por meio das malhas do clientelismo, o Estado sempre lançou os seus tentáculos sobre os espaços segregados”.

A insegurança pública é muito mais funcional, para uma série de rendosas atividades econômicas praticadas em terras cariocas, do que a segurança pública. Atividades que não se apartam do “mercado”. Ao contrário: constituem-no em medida que se mostrará surpreendente quando condições de temperatura e pressão permitirem a realização de estudos abalizados. Não é que respeitáveis empresários se tenham convertido em criminosos. É o contrário.

Exército e criminalidade

Até o presente, foi exceção e não regra o envolvimento direto de setores importantes das Forças Armadas com o chamado crime organizado, diferentemente do que ocorreu e ocorre no México, por exemplo.

Em alguns momentos da história, militares brasileiros cometeram crimes no exercício de suas funções: a Guerra do Paraguai (saque de Assunção, roubo de crianças paraguaias para cobrar resgate: vide Francisco Doratioto, Maldita Guerra); contrabando por Itaguaí (RJ) na segunda metade do século 20; saque de bens de presos políticos por integrantes dos DOI-Codi (notadamente o capitão Ailton Guimarães Jorge, também envolvido em contrabando e posteriormente próspero banqueiro de bicho e presidente da Liga das Escolas de Samba; vide Elio Gaspari, A Ditadura Escancarada) são alguns exemplos.

Nesse sentido, a atual convivência de contingentes do Exército com redutos de traficantes deveria preocupar os comandantes e seus chefes civis. Talvez seja o caso de não mais ceder à chantagem do governo de Sérgio Cabral Filho e de seu secretário de Segurança Pública, José Mariano Beltrame, realizada com amplo (mas não unânime) apoio da mídia carioca, fluminense e brasileira (TV Globo e demais redes).

Se as Forças Armadas, cuja imagem ainda sofre com seu papel tirânico durante o regime do golpe de 1964, forem tidas pela população como tão inconfiáveis quanto outros braços do Estado, e se não ficarem apartadas das contendas partidárias, a democracia brasileira enfrentará desafios difíceis de superestimar.

Improvisação e marketing

Cabral e Beltrame improvisam ações desde 2007, quando chegaram ao poder. A criação mesma das UPPs não foi consequência de nenhuma “estratégia” de combate às drogas ou ao crime organizado. Foi o desdobramento, tornado politicamente oportuno, de experiências anteriores de policiamento comunitário e de uma ocupação manu militari, com resultados considerados auspiciosos, da Cidade de Deus.

A primeira UPP foi criada no Morro Dona Marta após uma visita do secretário Beltrame a uma creche que, recém-construída, tinha sido ocupada por traficantes, devido a sua posição privilegiada como posto de observação, e não pudera funcionar. As mães cobraram alguma providência e Beltrame determinou que, a exemplo da Cidade de Deus, o Dona Marta fosse ocupado.

O marketing se encarregou depois de criar o nome e a sigla. Nome, repita-se, extremamente adequado: hoje, tendo em vista a economia em armas pesadas e munição, e a diminuição dos danos à “imagem”, até os traficantes, cuja meta é vender, e não simplesmente criar confusão, podem ser adeptos do estado de “paz” (armada).

Militares atrapalham negócios

O que, então, deu errado na região onde fica o Morro do Alemão, alvo de tiroteio na noite de terça-feira, 6 de setembro?

Foi a presença de militares. Quem não é morador, nem policial, nem jornalista, nem funcionário público designado para a área, desconhece a diferença entre, por exemplo, o Morro do Alemão e a Vila Cruzeiro, de um lado, objeto de patrulhamento pelo Exército, e, de outro, os morros do Adeus e da Baiana. Para o leigo, tudo cabe dentro do conceito de “Complexo do Alemão”, esse nome bizarro a mais não poder. Com isso, compradores menos habitués de cocaína, crack, maconha e quejandos evitam todo o “Complexo”. Caiu o movimento no Adeus e na Baiana.

No Alemão e na Vila Cruzeiro também caiu, devido à proibição de bailes funk, importantes catalisadores das vendas. Mas uma parte dos traficantes nunca foi embora do morro. Nem se apreenderam todas as armas. Ou melhor, algumas das apreendidas voltaram. Foram recompradas por seus antigos donos.

Quando se anunciou que as Forças Armadas não sairiam do Alemão em outubro, como negociado com o governo estadual, os descontentes estrilaram. Com balas traçantes. Na véspera do Sete de Setembro.

Proteção política

E por que, complete-se, o governo fluminense pediu a prorrogação da presença militar? Porque sabia, melhor do que ninguém, que a área ainda está longe da pretendida “pacificação”. E que, por alguma razão ainda não explicitada, a Polícia Militar ainda não se vê em condições de substituir o Exército.

A versão comprada pela mídia foi a de que não deu tempo de preparar novos soldados. Um mês atrás, porém, o secretário Beltrame havia demonstrado, em conversas, satisfação com o aprestamento dos recrutas que irão para o Alemão.

Diante do risco de mais desgaste da imagem do governador Cabral, foi feito – e aceito − o pedido de prorrogação da presença militar. Mais uma vez, desde a primeira abdicação das forças da segurança pública estadual, em 1992 (durante a Rio-92), contingentes das Forças Armadas sediados no Rio de Janeiro são usados para proteger capital político e ambições de grupos no poder. Talvez seja o caso de apurar melhor essa nova história.