O vocabulário do brasileiro ainda não deu conta da novidade. A partir de hoje, os eleitores se dividem entre os que chamam Dilma Rousseff (PT) de ‘presidente’ ou ‘presidenta’. Não há unanimidade sobre se ela é a primeira mulher presidente ou a primeira presidente mulher do Brasil. O fato é que a petista colocou, pela primeira vez, as mulheres no mais alto posto da República. E o vocabulário certamente se adaptará ao novo cenário.
A chegada de Dilma ao poder foi construída com base em ambiguidades na questão de gênero. A campanha da petista se apropriou de imagens intrinsecamente femininas, embora ultrapassadas. Associou a candidata ao título de ‘mãe do PAC’ ou de ‘mulher do Lula’ e tornou Dilma uma sucessora palatável, já que ‘subalterna’ ao futuro ex-presidente. ‘Isso foi intencional. Se o continuador fosse um homem, parte do eleitorado, sobretudo o masculino, poderia achar que o sucessor logo teria autonomia e se desligaria de Lula’, explica Fátima Pacheco Jordão, diretora do Instituto Patrícia Galvão, socióloga e especialista em pesquisas de opinião. Ela lembra que Dilma foi trabalhada para ser feminina ‘na aparência física, na contemporaneidade de seu cabelo’. ‘Ela foi se aperfeiçoando para ser mais feminina e não para se transformar numa ‘coronela’.’
Dilma também evitou formular políticas e propostas claras para as mulheres. Sempre reforçou o discurso de que poderia ser ‘a primeira presidenta’ do País, mas comprometeu-se pouco em atender aos interesses femininos. ‘É uma questão de conveniência eleitoral. Em temas delicados como planejamento familiar ou saúde, que era uma franquia forte do opositor, Dilma foi cuidadosa em seu programa’, diz Fátima, lembrando que Michelle Bachelet, primeira presidente do Chile, prometeu, ainda em campanha, compor um gabinete paritário, com 50% de ministros de cada sexo. ‘Prometeu e cumpriu’, completa Fátima.
Além disso, a polêmica do aborto ofuscou um possível maior engajamento da petista nos temas relevantes para as feministas. A armadilha eleitoral levou Dilma a recuar numa bandeira fundamental. ‘O clima de conservadorismo que se instalou no País, especialmente no segundo turno, pode prejudicar até os poucos direitos das mulheres e dos homossexuais conquistados até aqui’, lamenta Teresa Sacchet, pesquisadora do Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas (NUPPs), da Universidade de São Paulo. Para ela, a nação tornou-se mais intolerante e os candidatos perderam a oportunidade de ocupar politicamente o espaço para discutir questões de gênero. ‘É uma estratégia equivocada até do ponto de vista eleitoral. Falar para as mulheres poderia conquistar os indecisos.’
Apesar do estereótipo retrógrado e do baixo comprometimento, a eleição de Dilma pode representar um grande avanço para a ocupação do espaço político pelas mulheres. ‘Mesmo com todo o retrocesso, as candidaturas de Dilma e de Marina Silva e, agora, a eleição da petista criam um impacto permanente, a sociedade passa a discutir questões de gênero’, diz Teresa. ‘E, ainda que ela não tenha feito uma campanha feminista, como foi a de Bachelet, ela é sensível aos temas que atingem as mulheres. Não acredito que seja uma Margaret Thatcher.’
Efeitos
A eleição de Dilma dá vazão a uma demanda represada por mais representatividade feminina no poder. Uma pesquisa do Instituto Patrícia Galvão com o Ibope, realizada no início de 2009, mostrou que, do total de 2.002 entrevistados, 83% acreditam que a presença de mulheres melhora a política. Além disso, nove entre dez votariam em uma mulher e 59% fariam isso para qualquer cargo em disputa. ‘A eleição de Dilma desmistifica de vez os preconceitos e derruba o mito de que mulher não vota em mulher, por exemplo’, acredita Fátima Jordão.
Teresa Sacchet, que está estudando financiamento eleitoral, ressalta que mulheres recebem, em média, 40% menos recursos do que homens e, assim, têm mais dificuldade para se eleger. A razão para isso nem sempre é cultural ou sexista. ‘O problema é institucional. Os partidos não recrutam mulheres como deveriam. E os candidatos à reeleição têm mais chances de receber financiamento e prolongarem seu poder. É um ciclo difícil de romper’, explica. Embora haja uma lei, de 1997, que exige que os partidos cumpram cota de 30% de suas candidaturas com mulheres, não há punição para a legenda que não cumpre a determinação e, assim, a cota normalmente não é preenchida. ‘Neste ano, chegaremos a 21,5%, o que é pouco’, diz Teresa. A próxima legislatura terá 43 deputadas, quatro a menos que as eleitas em 2006 – hoje, 45 exercem mandato.
Para Maria Celina D’Araujo, pesquisadora da Fundação Getúlio Vargas (FGV), a ascensão de minorias sociais em geral – e não só mulheres – a postos de poder é um fenômeno generalizado, e não restrito ao Brasil. Nos últimos anos, houve eleição de presidentes indígenas na Bolívia e no Peru, mulheres no Chile e na Argentina, um operário no Brasil e um negro nos Estados Unidos. ‘Isso está relacionado ao processo de redemocratização na região’, diz. Ela alerta, porém, para um dado: hoje, as mulheres somam 8,8% da Câmara. Na Argentina, esse número chega a 36%. ‘Mesmo com uma mulher na Presidência, o Brasil ainda está muito atrasado.’
Complacência
É difícil mensurar o quanto o fato de ser mulher vai moldar a gestão de Dilma Rousseff. O estudo do Instituto Patrícia Galvão apontou que há uma percepção de que mulheres são mais comprometidas com valores éticos. ‘Existe também uma pesquisa feita pelo Banco Mundial que mostra que cidades administradas por mulheres têm menos casos de corrupção’, afirma Teresa Sacchet. Assim, há uma tentação de romantizar a presença delas no poder. ‘Uma mulher pode ser uma boa governante, com capital moral, como Bachelet, ou uma Thatcher, marcada pela insensibilidade social. Ou na linha das mulheres que governaram Índia, Paquistão e Filipinas, cercadas de acusações de corrupção’, alerta Maria Celina D’Araújo.
Independentemente da gestão que Dilma conduzir, o fato de uma mulher ocupar o Palácio do Planalto deve provocar reações diferentes em quem acompanha o poder. ‘Vamos ter de adaptar nossos filtros, que são bastante primitivos. Haverá muitos desencontros, não estamos prontos’, avalia Fátima Jordão. ‘Há uma enorme complacência com os homens no poder, que terá de ser retreinada para as mulheres. Uma mulher presidente não consegue, por exemplo, ter amantes ou filhos fora do casamento, não consegue o silêncio da imprensa. Prova disso é que já insinuaram que Dilma deveria voltar com o ex-marido, com quem se dá bem.’
Estando prontos ou não, filtros e vocabulários adaptados ou sendo retreinados, a partir de 1º de janeiro teremos uma presidente, Dilma Rousseff. Sua chegada à Presidência marca uma nova era na história política do Brasil. ‘Isso pode significar uma melhoria da autoestima das mulheres e um incentivo para que elas possam reequilibrar essa disparidade de gêneros no poder’, afirma Fátima.