Thursday, 19 de September de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1306

Na república do Tabom

No auge da repressão durante o regime militar, anos 1970, ‘tudo bem’ era cumprimento, saudação, bordão, virgula, reticências. Expressão vale-tudo, resposta espontânea da sociedade cordial às agruras do momento.

Agora, na outra banda do Atlântico, descobrimos a origem desta benevolência – ou resignação – quando o presidente Lula na visita a Gana foi recebido pelos ‘Tabom’. Não são uma tribo, mas conterrâneos nossos, descendentes dos escravos alforriados ou libertados pela Abolição, que no fim do século 19 retornaram ao país de origem.

Como só falavam o português e eram intrinsecamente felizes apesar de egressos do impiedoso cativeiro, usavam o ´tá-bom? como ‘how do you do?’ ou tá-bom para expressar sua conformidade com a vida e o mundo. Tabom para cá, Tabom para lá, o nome pegou: virou identificação grupal, contribuição brasileira à civilização africana.

A nossa ‘sociedade cordial’ não foi inventada por Sérgio Buarque de Holanda, mas por um amigo, poeta melancólico geralmente enfezado, Ribeiro Couto. O historiador-filósofo acabou conformado não sem antes esgoelar-se na explicação de que a tal cordialidade não era comportamento pessoal mas característica de uma relação social que passa ao largo das leis, códigos, instituições.

Do rápido convívio com os Tabom o presidente Lula trouxe, além da valiosa e vistosa manta, uma indisfarçável bagagem de felicidade. Sentiu-se um rei, declarou que política se faz no tête-à-tête, abraçou, foi abraçado, assumiu-se como membro efetivo da nação Tabom e expoente máximo da comunidade Tudo Bem.

A tal da auto-estima produzida nos laboratórios do ufanismo é extraordinária, contagiante. Graças a ela estamos imunes ao derrotismo, driblamos as angústias e calamos as indignações. Nos distraímos com o blablablá do nepotismo e esquecemos que o emprego de parentes sem concurso, além de aberração funcional, é injustiça, imoralidade e truculência.

O nepotismo contraria o princípio da isonomia que deve reger o Estado de Direito, representa um desvio de recursos públicos e configura-se como formação de quadrilha. Mais alguns discursos em plenários vazios e mais algumas manchetes estaremos todos persuadidos de que extirpamos definitivamente este tipo de corrupção da vida pública.

Ofensa embutida

Em outro passe de mágica nossos brios igualitários e libertários foram instantaneamente atendidos pela prisão do zagueiro argentino Leandro Desábato, que injuriou o atacante Grafite. E não percebemos que nos entregamos conscientemente a um surto xenófobo tão grave quanto a impulsiva ofensa racista. O argentino insultou e cometeu crime inafiançável, previsto na Constituição, abriu-se um inquérito, então aplique-se uma multa ou pena alternativa, suspenda-se o atleta por alguns jogos e junte-se o ofendido e ofensor numa campanha mundial contra o racismo no esporte.

Esta prisão ordenada pessoalmente pelo Secretário de Segurança do estado de São Paulo e endossada pela mídia ávida por um linchamento é um escárnio num país onde responsáveis por crimes hediondos andam soltos nas ruas e juízes são presos como ladrões e assassinos.

O presidente Lula agiu corretamente ao pedir desculpas aos povos africanos aqui escravizados e humilhados durante quatro séculos. Mas neste grande circo montado ironicamente por causa da Taça Libertadores, ninguém lembrou-se de algo comezinho: tão criminoso quando o argentino foi aquele que rebatizou o jogador Edinaldo Batista Libânio, do São Paulo, como Grafite. Não é uma alcunha carinhosa, é ofensa embutida no nome, perene, indelével, tatuagem pejorativa: sinônimo de pichação, marca preta, estigma sujo.

Tudo bem, Tabom, somos uma sociedade tão doce e tão cordial que o escritor que escreveu um livro-hino chamado Brasil, País do Futuro aqui matou-se seis meses depois do lançamento.