Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Na terra do compreensível

Klaus Fuchs é um nome pouco conhecido entre os que não estudaram a fundo a II Guerra Mundial e a Guerra Fria. Fuchs participou do projeto Manhattan, ou seja, foi um dos pais da primeira bomba atômica. Os soviéticos só puderam construir sua própria bomba atômica porque Klaus Fuchs entregou aos russos, de graça, quase todos cálculos e resultados de experimentos da equipe liderada por Oppenheimer. Foi um dos maiores casos de traição e espionagem jamais vistos na história da humanidade. Quando questionado sobre os motivos de ter passados os segredos da bomba H ao inimigo, Fuchs respondeu que o mundo ficaria menos perigoso se duas potências – e não apenas um único país – adquirissem o poder de exterminar com o mundo inteiro. Compreensível: se os Estados Unidos realmente tivessem só para si tamanha supremacia em relação a todos os outros países, quem iria garantir que não teríamos tempos muito mais sombrios após a II Guerra do que foram os anos de Guerra Fria? Poder demais nas mãos de uma só pessoa ou de um só povo fatalmente resulta numa tirania.

O exemplo de Fuchs nada mais é que apenas uma tentativa de buscar na história um caso que nos leve a compreender por que Dilma Rousseff mantém a postura diplomática discutível que Lula mantivera durante todo o seu mandato. Em junho, duas notícias envolvendo polêmicas decisões da diplomacia brasileira geraram muita controvérsia: a recusa da presidente em receber a advogada iraniana Shirin Ebadi – Nobel da Paz em 2003 – e a liberdade do ativista italiano Cesare Battisti – condenado em 1988 por ter matado quatro pessoas na Itália.

O equilíbrio e a paz mundial

O governo brasileiro há anos vem tentando se refugiar na terra do compreensível. A aproximação com o Irã segue a lógica de Klaus Fuchs, guardadas as devidas proporções: num mundo sem Cortina de Ferro nem Muro de Berlin, o mais próximo que o superpoderoso governo americano teria como “marco regulatório antionipotência” é o controverso presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad. Desde as negociações na ONU para legitimar o programa nuclear do Irã – quando o Brasil tentou, a todo custo, defender o indefensável enriquecimento de urânio naquele país – percebe-se que questões ideológicas movem os diplomatas brasileiros. O governo do PT não admite que os Estados Unidos figurem solitários no comando do mundo porque isso seria o mesmo que se curvar a um modelo de economia e de sociedade contrário ao modelo que os partidos de esquerda defendem.

Como membro do Brics – o badalado grupo dos países em desenvolvimento, juntamente com Rússia, Índia, China e África do Sul –, o Brasil vem conquistando no cenário mundial uma posição que jamais teve no século 20. Hoje, nossa opinião realmente importa porque somos uma democracia madura e uma economia em crescimento, ou seja, pouco tem a ver com a atitude meio “rebelde” do Itamaraty em relação aos americanos. Por isso, ignorar Shirin Ebadi – uma das mais importantes críticas ao atual governo iraniano – não deixa de ser uma mensagem diplomática ensurdecedora. Na balança do poder mundial, mesmo tendo recebido Barack Obama com todas as honras possíveis, Dilma Rousseff colocou-se um pouquinho mais para o lado de Ahmadinejad, mesmo que aparentemente a contragosto. Em teoria, para manter o equilíbrio e a paz mundial, nosso governo esnobou uma reconhecida ativista pelos Direitos Humanos e afagou o ego de um governo totalitário.

Compreensíveis, mas condenáveis

O caso Cesare Battisti parece seguir uma linha um pouco diferente, mas só mesmo na aparência. Em nome da soberania nacional, o Supremo Tribunal Federal avalizou a decisão de Lula e tornou o criminoso italiano uma pessoa livre. Battisti, inclusive, já está trabalhando numa editora em São Paulo e pensa em se tornar cidadão brasileiro. O argumento dos defensores do ex-membro dos Proletários Armados pelo Comunismo– que conseguiram impedir sua extradição para a Itália – é o de que lá ele correria risco de vida. Interessante inversão de valores: será que se Shirin Ebadi voltasse ao Irã também não poderia ser executada por questões políticas? Por que Battisti se cobre de glórias e direitos em terras brasileiras enquanto Ebadi é quase varrida para debaixo do tapete em sua visita ao Brasil? Salvo seu comparecimento a meia dúzia de eventos organizados pelo setor privado e por universidades, onde foi aplaudida de pé, oficialmente pouco ou nada se fez para ajudá-la em sua incontestável luta pela democracia e pela justiça no Irã.

A história parece ter absolvido Klaus Fuchs de sua suposta traição e do fato de ter escancarado a Caixa de Pandora para os dois lados de uma guerra que, felizmente, não aconteceu. O que Fuchs fez se tornou um exemplo de como uma atitude condenável, com o tempo, pode tornar-se compreensível. No entanto, as atitudes diplomáticas do governo brasileiro aparentemente são compreensíveis, mas definitivamente não deixam de ser condenáveis.

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[Candice Soldatelli é bacharel em Comunicação e tradutora, São Marcos, RS]