‘(…) o que esta multidão eufórica ignorava, e que se pode ler nos livros, é que o bacilo da peste não morre nem jamais desaparece, que ele pode permanecer durante dezenas de anos adormecido nos móveis e nas roupas, espera pacientemente nos quartos, nas caves, nas malas, nos leços e nos papéis, e que, talvez, viria o dia em que para a desgraça e o ensinamento dos homens, a peste acordaria seus ratos e os enviaria para morrer em uma cidade feliz.’ (Albert Camus, A Peste)
A ordem é tudo voltar ao normal. As autoridades afirmam que tudo está sob controle e pedem que a população não ceda ao medo. A insurgência organizada contra o Estado desorganizado recua, não só por causa de suas 52 baixas e porque sabia desde o começo que não tem fôlego para ir mais longe, mas, acima de tudo, porque precisa retomar seus negócios. Já fazem parte do establishment e sabem que ‘money makes the world go around’. Precisam da normalidade. Já fazem parte da engrenagem.
São Paulo não pode parar. O comércio, a indústria e o serviços não podem parar. O tráfico não pode parar. O trânsito pode até engarrafar, mas não pode parar. Os pais precisam levar os filhos às escolas em alta velocidade, buzinando agressivamente contra os carros mais lentos que estão no meio do caminho, para depois seguirem nervosamente ao trabalho. Quem não pode, que se esprema nos ônibus. A mídia nunca pára. Sua auto-imagem é de um mero espelho dos fatos, mas tornou-se um dos principais mecanismos da engrenagem, se não for o principal.
Originalidade insuportável
É preciso dar um sentido moral para o retorno à normalidade. Ávidos por serem a má consciência de seu tempo, teóricos com o dedo em riste contra a cara dos paulistanos (e paulistas) do início do século 21, exigem que estes mirem-se no exemplo dos londrinos (e britânicos) de 1940. Como se os ‘bin ladens’ do PCC, que vivem em nossas entranhas, pudessem ser comparados aos aviões da Luftwaffe, que tinham de sobrevoar o Canal da Mancha. Comparam a guerra com a peste.
Moral de rebanho. O rebanho não precisa apenas de normalidade, mas de homogeneidade e de completa neutralização de insuportáveis e intoleráveis originalidades para ser devidamente explorado, tributado, assaltado. Ai daquele que se indignar contra ‘toda essa engrenagem que sente a ferrugem lhe comer’.
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Jornalista, editor do blog Laudas Críticas