A manchete da Folha de S.Paulo de domingo (8/4 – ‘Entidade alertou Lula de falhas no controle aéreo’) [ver matéria abaixo] deve dar o que falar. Apesar de escondida pelo carnaval de fotos e oferta de brindes, a reportagem desmente uma incrível coleção de inverdades que as autoridades vêm oferecendo desde outubro passado.
O relatório da Federação Internacional das Associações de Controladores de Tráfego Aéreo, feito em seguida à tragédia com o vôo 1907, foi categórico: nossos controladores estavam despreparados, os equipamentos eram obsoletos, a cobertura de rádio foi imperfeita e os sistemas operacionais eram inadequados.
A conclusão foi encaminhada à presidência da República em novembro passado. A Polícia Federal já indiciou os pilotos do jato executivo Legacy, mas o governo ainda não revelou as demais providências técnicas ou legais cabíveis.
A matéria da Folha deixa claro que o apagão aéreo poderia ter sido contornado, minimizado ou mesmo evitado ainda em novembro se as autoridades civis e militares tivessem examinado o relatório.
Nenhuma das conclusões do relatório da Federação Internacional de Controladores constitui novidade. Alguns jornalistas mais rigorosos e persistentes têm publicado periodicamente avaliações semelhantes. E nada acontece. Por quê? Porque não basta denunciar uma irregularidade, é preciso insistir, martelar, desdobrar.
A manchete de domingo na Folha, embora arrasadora, pode cair no vazio se nos dias seguintes jornais, rádios e TVs a ignorarem.
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Ainda uma crise aberta
Mauro Malin
Os jornais de segunda-feira (9/4) não retomam o assunto, talvez porque, como se sabe, as redações trabalham esvaziadas aos domingos, mais ainda num feriado. Mas vale assinalar que também informações da revista Veja desta semana, sobre a reação da Aeronáutica à crise, ficaram sem repercussão.
No jornal Valor (9/4), informa-se sobre circunstâncias da nomeação do brigadeiro Juniti Saito para o comando da Força Aérea. No Estado de S.Paulo, especialistas questionam a condução das políticas aéreas, cujo resultado, até agora, é permitir que passageiros sofram em salas de espera embelezadas. Noticia-se também que oficiais da Aeronáutica que responderam com insubordinação à greve dos controladores poderão ser processados.
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Relatório já apontava controle aéreo inseguro
Leila Suwwan # copyright Folha de S.Paulo, 8/4/2007
O sistema de controle de tráfego aéreo brasileiro é falho e tem um nível baixo de segurança. Os controladores não têm preparo, os equipamentos são velhos, não há suporte técnico, a cobertura de rádio é ruim e os sistemas operacionais são inadequados. E, apesar disso, a Aeronáutica afirma ter um dos melhores e mais modernos sistemas do mundo.
Esse é o resumo do relatório preparado pela Ifatca (Federação Internacional das Associações dos Controladores de Tráfego Aéreo) após uma vistoria geral do Cindacta-1 (Brasília) em outubro do ano passado, em decorrência do choque entre o Boeing da Gol e o jato Legacy que deixou 154 mortos em 29 de setembro.
O documento interno, obtido com exclusividade pela Folha, lista os problemas que acabaram sendo evidenciados nos últimos seis meses de crise aérea, como a precariedade do sistema de gerenciamento de freqüência de rádio ou de planos de vôo. Confirma o despreparo e a sobrecarga dos controladores de tráfego aéreo.
E aponta para outros problemas que podem causar novos episódios no apagão aéreo, já que eles não teriam sido solucionados desde então.
Relatórios
Os resultados foram enviados, em caráter confidencial, para a OACI (Organização da Aviação Civil Internacional) e para a Ifalpa (Federação Internacional das Associações de Pilotos de Linhas Aéreas).
E uma carta foi enviada ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 9 de novembro de 2006 para oferecer assessoria e consultoria para auxiliar o governo na construção de um marco institucional novo, mais transparente e seguro.
‘Esperamos que as autoridades brasileiras adotarão uma fórmula sistêmica para melhorar a segurança dentro do sistema de aviação civil brasileira, com base na premissa de que operadores, individualmente ou em grupo, são exclusivamente responsáveis por acidentes ou incidentes’, diz o texto. Não houve resposta.
Passados meses de crise e o motim dos controladores no último dia 30, a Ifatca fez apelos públicos sobre o risco de novos acidentes aéreos e a necessidade urgente de modificar o sistema, que tem falhas sérias de segurança.
O relatório foi elaborado após a visita de três representantes da federação. Além de auxiliar no tratamento de estresse pós-traumático dos controladores, a Aeronáutica concedeu acesso pleno aos profissionais e a parte das instalações do Cindacta-1.
Os representantes da Ifatca conversaram com controladores, técnicos e oficiais. Observaram os trabalhos e os equipamentos usados.
Internamente, os resultados foram considerados ‘assustadores’. E não foram liberados antes devido à expectativa de que mudanças seriam rapidamente feitas.
Inexperiência
Os controladores foram considerados muito jovens, inexperientes e mal-treinados. O nível de inglês estava longe do esperado e havia desconhecimento sobre procedimentos-padrão da OACI.
Foram detectados riscos na sobrecarga e estresse dos controladores, devido ao volume de tráfego aéreo, armadilhas do sistema e a necessidade de sempre ter que lidar com os problemas técnicos, principalmente rádio e radar.
Foi constatado que há defasagem em equipamentos, além de falta de suporte adequado. Os técnicos que foram contatados pelos auditores também não teriam o preparo necessário para a atividade.
A falta de sistemas para emergências ou ‘backups’ adequados foi destacado. Segundo a Ifatca, não havia um telefone independente para o caso de perda de contato com os outros Cindactas.
Não havia rádio de emergência independente ou um ‘backup’ do sistema central para o caso de queda geral de freqüências -o que ocorreu com a pane do equipamento registrada dois meses depois, no apagão de 5 dezembro.
Era esperado encontrar um sistema alternativo para leitura dos sinais de radar, mas só existe um. Outros mecanismos de segurança também estavam ausentes, como um ‘stand by’ independente do sistema de planos de vôo e seu ‘backup’.
Zona cega
A zona cega na região onde ocorreu o acidente do vôo 1907 foi verificada, apesar de o local estar coberto pelo radar do centro de Manaus.
Segundo a Ifatca, é relativamente simples enviar a visualização do Cindacta de Manaus para o Cindacta de Brasília.
Esse problema já estaria sendo corrigido por meio do envio do sinal de radar ao Cindacta-1 (Brasília), mas havia dificuldades técnicas.
O relatório não entra em detalhes sobre a questão militar, mas comenta que a hierarquia e peculiaridades internas de relacionamento entre Cindactas e Comando da Aeronáutica não permitiam o diagnóstico de problemas e o encaminhamento de melhorias.
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Ifatca não tem autoridade para vistorias, diz FAB
Leila Suwwan # copyright Folha de S.Paulo, 8/4/2007
O Comando da Aeronáutica não quis comentar os problemas apontados no relatório da Ifatca, mas afirmou que a entidade não tem autoridade ou competência para realizar relatórios ou vistorias de sistemas de controle aéreo.
‘O único órgão com autoridade e competência técnica para inspecionar e sugerir melhorias ao Sisceab (Sistema de Controle do Espaço Aéreo Brasileiro) é a OACI (Organização da Aviação Civil Internacional) e já está agendada uma auditoria no país em 2008’, informou o Cecomsaer (Centro de Comunicação Social do Comando da Aeronáutica).
‘A equipe da Ifatca era formada por psicólogos e esteve no Cindacta-1, com a concordância da FAB, com o objetivo de prestar auxílio aos controladores envolvidos no acidente do vôo 1907 da Gol.’
Segundo a Folha apurou, havia técnicos na equipe de três membros da Ifatca que estiveram em Brasília.
O documento que a entidade elaborou aponta falta de preparo dos controladores de vôo e baixo nível de segurança no sistema de tráfego aéreo do país. Os membros da Ifatca observaram os trabalhos e os equipamentos usados, e o resultado foi considerado ‘assustador’.
Foram apontados problemas como inexperiência e falta de treinamento dos controladores de vôo. Também foi constatado que os equipamentos são obsoletos e falta suporte adequado.
Apesar de recusar comentários específicos, nos últimos meses ocorreram algumas mudanças relacionadas às deficiências que estão listadas no relatório da Ifatca, sediada em Montréal (Canadá).
Entre as medidas pós-acidente da Gol, a FAB já aumentou o número de vagas nos cursos de formação de sargentos controladores e remanejou pessoal para completar escalas desfalcadas.
Técnicos também estariam fazendo os ajustes finais para permitir a visualização por radar no Cindacta-1 da ‘zona cega’ no sul da Amazônia.
A Aeronáutica também já tem planos para ‘redesenhar’ as fronteiras do espaço aéreo controlado por cada Cindacta, a fim de descarregar o centro de Brasília.
Os controladores também estão matriculados em cursos intensivos de inglês para melhorar a fluência no idioma.
E também já foi comprado outro equipamento de gerenciamento de freqüências de rádio, que foi enviado para Campo Grande. O que estava lá será o novo ‘backup’ em Brasília.
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Tráfego aéreo tem deficiência de aparelhos
Alencar Izidoro # copyright Folha de S.Paulo, 8/4/2007
A falta de aparelhos básicos para auxiliar pilotos, a defasagem tecnológica dos que existem e a demora para repará-los são sinais de que os passageiros de avião no Brasil não têm por que esperar boas condições para voar mesmo quando -e se- for resolvida a disputa entre controladores e Aeronáutica.
No terceiro mais movimentado aeroporto do país, em Brasília, comandantes não se cansam de reclamar da inoperância de um instrumento básico para a orientação dos pousos em uma das cabeceiras da pista -e que deveria indicar a inclinação do avião na descida.
No Rio, pilotos contestam a demora para que uma gravação eletrônica das condições meteorológicas do aeroporto seja consultada no ar.
Em São Paulo, líder em movimento aeroportuário, equipamentos para orientar acessos às aerovias aguardam há anos soluções definitivas de reparo.
Os problemas são citados diariamente por profissionais da aviação como agravantes potenciais dos atrasos nos vôos -e até de riscos à segurança.
Em novembro de 2006, a Aeronáutica admitia ter 40 aparelhos de auxílio à navegação de pilotos e outras 24 freqüências da comunicação terra-ar sem funcionar no país -4,9% e 2,4% do total, respectivamente.
Nas últimas semanas, a instituição passou a se recusar a revelar os números atualizados. Só diz, em nota, que as informações são restritas ‘à área de manutenção’ -e não públicas.
Precisão do pouso
Em Brasília, a deficiência citada por pilotos e admitida extraoficialmente por oficiais da Aeronáutica é em uma das funções do ILS (Instrument Landing System) da cabeceira 29.
O ILS é um sistema difundido no mundo inteiro para a orientação precisa do pouso. Sem ele -ou com uma das funções prejudicadas-, os pousos perdem precisão e dependem mais da visão e das mãos do piloto. O problema pode inviabilizar as operações em dias de neblina, por exemplo.
O mesmo equipamento ficou um mês quebrado semanas atrás no aeroporto de Cumbica, em Guarulhos (Grande SP).
O Brasil tem diversos aeroportos de porte significativo e que nem sequer têm ILS. O comandante Célio Eugênio de Abreu Júnior, assessor de segurança de vôo do Sindicato dos Aeronautas, afirma que ao menos sete aeroportos de capitais brasileiras ainda não estão com esses equipamentos, incluindo Vitória e Aracaju.
As despesas do programa de segurança de vôo e controle do espaço aéreo brasileiro programadas para este ano devem ficar perto de R$ 550 milhões.
Já os investimentos nos aeroportos -a maioria dos quais visando a ampliação de capacidade e conforto dos passageiros- acumulam quase R$ 3 bilhões em quatro anos e podem passar de R$ 1 bilhão em 2007.
Ronaldo Jenkins, coordenador de segurança de vôo do Snea (sindicato das empresas aéreas), diz ser ‘triste’ a constatação de que há aeroportos sem nem ao menos ter aparelhos de auxílio dos pousos.
Outro lado
A assessoria de imprensa da Aeronáutica informou que há planos de médio prazo para equipar os aeroportos que não dispõem de ILS e modernizar outros aparelhos do tráfego aéreo. Ela afirmou ainda haver restrições geográficas de funcionamento de equipamentos em alguns lugares onde eles não foram instalados.
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Símbolos do apagão aéreo dizem não se arrepender
Kátia Brasil # copyright Folha de S.Paulo, 8/4/2007
Os controladores de vôo do Cindacta-4, sediado em Manaus, deram um ‘rosto’ à crise aérea brasileira ao se deixarem fotografar durante greve de fome e aquartelamento.
A imagem virou símbolo do 30 de março, dia em que o caos se instaurou novamente nos aeroportos do Brasil. A Folha localizou e entrevistou cinco dos controladores que aparecem na fotografia.
Eles dizem que não se arrependem da manifestação nem da imagem, registrada dentro do alojamento de 30 metros quadrados do Cindacta-4, no qual permaneceram confinados e em greve de fome até a madrugada do dia 31. No protesto, pediam melhores condições de trabalho.
‘Sentimos tristeza e constrangimento pelas imagens que vimos pela televisão, de mulheres, homens, crianças e idosos dormindo no chão dos aeroportos’, disse o sargento Walber Sousa Oliveira, 26. ‘Mas estamos dispostos a enfrentar o constrangimento ou a fúria de algum passageiro em decorrência da segurança no ar.’
Depois da manifestação, que se espalhou por todo o país parando os aeroportos brasileiros, foi instaurado um IPM (Inquérito Policial Militar) podendo levar os controladores a penalidades que variam de quatro a oito anos de detenção, conforme o regimento interno da Justiça Militar.
Na quinta-feira, o sindicato da categoria pediu perdão à sociedade na tentativa de retomar as negociações com o governo e amenizar as punições.
O Cindacta-4 (Centro Integrado de Defesa Aérea e Controle do Tráfego Aéreo), em Manaus, foi criado a partir da implantação do projeto Sivam (Sistema de Vigilância da Amazônia) e é responsável pelo controle do tráfego aéreo no Amazonas, Roraima e Mato Grosso e em parte do Pará. O centro funciona como a ‘porta de entrada’ do país, responsável por 90% do tráfego aéreo que evolui dos Estados Unidos e da América Central.
Como o sargento Oliveira, dois dos outros operadores de tráfego aéreo entrevistados -os também sargentos Lisandro Koyama, 28, e Daniel Tavares de Lima, 28- deixaram suas famílias em Belém (PA) para fazer o curso da FAB na Escola de Especialistas de Guaratinguetá, em São Paulo, antes de ingressarem no Cindacta-4.
Na escola estudaram também os outros sargentos entrevistados: o fluminense Alex Gonçalves Sá, 25, e o cearense Rivelino de Paiva, 36.
Todos os controladores entrevistados se deslocaram para Manaus entre 2001 e 2005. São casados e ganham salários entre R$ 1.600 e R$ 2.500, em valores líquidos. Pagam aluguel porque não conseguiram uma casa cedida pela FAB. Trabalham numa jornada de 36 horas por semana, variável de acordo com a escala.
No dia 30 de março, os controladores do Cindacta-4 fizeram circular entre eles uma carta na qual relatavam os problemas nas operações do tráfego aéreo. A notícia correu entre os Cindactas através de ligações de telefones celulares.
‘Não temos como saber se nós fomos os primeiros [a iniciar o protesto]. Começamos a ligar para os nossos amigos de escola [do curso em Guaratinguetá] para saber o que estava acontecendo. Aqui pensamos em nos mobilizar a partir de quinta para sexta-feira’, disse Oliveira.
‘O pessoal que ia chegando [para cumprir a escala] ficava sabendo da greve de fome e ia fazendo também, e assim foi repassando. Acabou sendo uma sensibilização geral.’
A paralisação em Manaus começou à meia-noite de sexta-feira e reuniu operadores de quatro turnos, cerca de 50 dos 65 profissionais do órgão. Alguns controladores permaneceram 30 horas sem comer.
Com 15 anos como profissional do controle de tráfego aéreo, o sargento Rivelino de Paiva afirma que a motivação para o protesto foi o ‘estado psicológico’ dos controladores. ‘Somos tratados como máquina, esquecendo da parte psicológica, mental, física, social, familiar, médica.’
Entre os problemas operacionais apontados na carta, os controladores citavam falhas nos radares (como variações de rumo, velocidade e nível de vôo) e nas freqüências de rádio -que, segundo eles, põem em risco a segurança dos aviões. Questionaram ainda a carga-horária de 180 horas de trabalho por mês, quando o máximo regulamentado é 168, e falta de investimento da FAB em cursos de língua inglesa.
‘A greve de fome e o aquartelamento voluntário foram a única decisão possível diante de todo o problema. Fiquei 23 horas sem comer’, disse Daniel Lima, na função desde 2002.
O protesto acabou na madrugada do dia 31 de março. Os controladores se negaram a revelar quem, dentro do Cindacta-4, tirou a foto-símbolo da crise aérea.