Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Não há democracia sem imprensa livre

O acalorado debate sobre liberdade de imprensa que ganhou vulto no Brasil nas últimas semanas suscita, às vésperas de mais uma eleição presidencial, uma necessária reflexão sobre a imprensa e seu papel na manutenção da democracia.

Parece inegável – atualmente, e já há mais de dois séculos – a polêmica problematização do chamado Quarto Poder – imprensa e democracia são sistemas institucionais e simbólicos interdependentes. Pode causar espanto a alguns a força dessa afirmação, mas atualmente parece inescapável a conclusão de que não há imprensa sem democracia – pelo menos a imprensa independente e responsável que queremos ter. De maneira talvez mais ousada, porém não imprudente, arrisco dizer que não há também democracia sem imprensa.

Thomas Jefferson, terceiro presidente dos Estados Unidos, de fato afirmou que ‘não há democracia sem liberdade de imprensa’. Estava certo. Fortalecida por uma série de noções – o interesse público de Rousseau, a liberdade de opinião de Voltaire, entre outras que mais tarde culminariam no conceito fundamental de opinião pública – a imprensa no século 19 começou a conquistar um papel de destaque no complexo sistema de equilíbrio dos Poderes, um lugar na equação segundo a qual ‘poder controla poder’.

Vista até então como um obscuro reduto de escritores de segunda categoria sem nenhuma representatividade ou legitimidade, mais preocupados em veicular propaganda ideológica do que em agir como caixa de ressonância da sociedade, a imprensa, a partir do crescimento do próprio ideário democrático, encontra sua legitimidade nas teorias inglesas sobre opinião pública.

Escândalos da imprensa sensacionalista

O filósofo e jurista inglês Jeremy Bentham situa no século 19 a transição de uma imprensa descompromissada com a sociedade para uma imprensa que se funda e fortalece na opinião pública. Não à toa, esse também é o momento em que os jornais passam a perseguir a popularização, desenvolve-se a chamada Penny Press, em que os jornais reduzem seus preços para um centavo como forma de não apenas elevar suas tiragens, mas, em última instância, transformar seus modelos de negócio, trocando uma reduzida elite econômica pelo que se convencionou chamar de massa.

Se a democracia é o regime da maioria, é natural que a opinião pública seja encarada como parte fundamental da teoria democrática do Estado.

Esse novíssimo cenário suscita outras questões: como é que a opinião pública se informará para tomar suas decisões? Como se exprimirá? Citando novamente Bentham, a resposta é uma só: pela imprensa.

A caminhada é longa e árdua, mas parece culminar, no século 20, com a decantação do conceito de Quarto Poder. A imprensa se torna elo indispensável entre opinião pública e governantes. Como em 1931 escreveu o juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos Evan Hughes, num acórdão histórico, ‘o fato de a liberdade de imprensa poder ser abusada por perversos fornecedores de escândalos não torna menos necessária a imunidade da imprensa’. Acrescento que, assim como escândalos nos demais Poderes não podem ser explorados como pretexto por oportunistas, protoditadores, para o fechamento do Congresso, o cerceamento do Judiciário, o aparelhamento ideológico do Executivo, os escândalos da imprensa sensacionalista, descompromissada, enviesada ou simplesmente falível não podem servir de ultimato para a imprensa como um todo.

Ressalva a casos de sigilo

Não é coincidência o fato de nações tão diferentes estrutural e culturalmente como Cuba, Irã, China e tantas outras terem em comum o fato de cercearem de maneira ostensiva a liberdade de imprensa – tanto de órgãos locais como, num mundo globalizado, internacionais. Não são países democráticos. Não há democracia sem liberdade de imprensa. Nem imprensa livre sem democracia. Nesse sentido, o pensador, político e historiador francês Alexis de Tocqueville escreveu que a soberania do povo e a liberdade de imprensa são absolutamente inseparáveis.

Em publicação sobre os princípios da democracia, a embaixada americana no Brasil dedica um capítulo inteiro à imprensa. Afirma que ‘numa democracia, a imprensa não deve ser controlada pelo governo. Os governos democráticos não têm ministros da informação para decidir sobre o conteúdo dos jornais nem sobre as atividades dos jornalistas. Nas democracias, o governo é responsável pelos seus atos. Os cidadãos esperam, portanto, ser informados sobre as decisões que os seus governos tomam em seu nome. A imprensa facilita o `direito de saber´, agindo como supervisor do governo, ajudando os cidadãos a responsabilizar o governo e questionando as suas políticas. Os governos democráticos garantem o acesso dos jornalistas a reuniões públicas e a documentos públicos. Não colocam restrições prévias sobre aquilo que os jornalistas podem dizer ou escrever’.

O governo americano toca aqui num ponto sensível e central neste debate. Não basta instituirmos uma imprensa livre, em que jornalistas não são previamente censurados ou posteriormente perseguidos em virtude da repercussão do seu trabalho. É uma democracia frágil e uma liberdade de imprensa quase de fachada, ou no mínimo primária, insuficiente, aquela em que a imprensa livre não tem acesso a reuniões públicas, documentos públicos, estatísticas públicas. Abro um parêntese, para os que se incomodam com a transformação do exemplo norte-americano nalgum tipo de paradigma democrático, para observar que, reflexo dos tempos de guerra ao terror, o próprio documento da embaixada finaliza a sua discussão sobre a importância da imprensa livre com uma ressalva a respeito dos casos em que o sigilo e a importante, porém muitas vezes vaga, ‘segurança nacional’ se impõem sobre o direito à informação.

Sem Lei de Acesso à Informação

Novamente, a discussão não é nova, nem simples. A Declaração do Homem e do Cidadão já afirmava, em seu artigo 11, datado de 1789, que ‘a livre circulação de pensamento e opinião é um dos direitos mais preciosos do Homem’. Mais contemporânea, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela Assembleia-Geral das Nações Unidas em dezembro de 1948, fala em acesso à informação, já entendendo-a como pré-requisito para a formação e manifestação de opinião, como a Carta de dois séculos antes preconizava.

O histórico brasileiro nesse sentido é curioso. Na era Vargas do período republicano, por exemplo, bem como durante o regime militar iniciado em 1964, houve menos liberdade de imprensa – e muito menos acesso à informação – do que em períodos do Brasil Império, pré-República. Nos chamados anos de chumbo da ditadura, o cerceamento à imprensa atingiu seu paroxismo, suscitando protestos corajosos, como a publicação de poemas de Camões pelo jornal O Estado de S. Paulo em espaços previamente censurados pelos militares.

Após a redemocratização, a Constituição de 1988 volta a instituir a liberdade de informação e de expressão e o acesso à informação. A regulamentação desses direitos, contudo, é problemática, com maior preocupação em regulamentar o sigilo, ou seja, legislar o direito ao acesso às avessas, do que de determinar regras pertinentes à divulgação de documentos públicos.

Enquanto a discussão prossegue, quem se dedica a extrair leite ou ouro dessas minas sofre cotidianamente com os inúmeros obstáculos impostos. Volta à tona a incômoda questão do patriarcalismo, do coronelismo, no Estado brasileiro, do apossamento, da privatização da coisa pública. O jornalista que busca informações sobre orçamentos, metas, obras, reuniões e decisões públicas de toda sorte é visto como um intruso, um incômodo, um xereta impertinente.

Volta-se assim à ultrapassada visão do século 18 sobre a profissão, quando se considerava o jornalista um escritor de segunda linha motivado por uma obscura agenda ideológica. Na esmagadora maioria dos casos, não é assim, dado o grau de profissionalização e sofisticação da imprensa brasileira. E, de qualquer forma, enquanto o jornalista não for entendido como um representante legítimo da sociedade, um agente social, um, no dizer da pesquisadora Cremilda Medina, mediador na relação entre sujeitos, prosseguiremos sem acesso a informações fundamentais para a tomada de decisão pressuposta em qualquer organização democrática. Prosseguiremos imersos em uma democracia quase superficial, em que a aparência, o discurso oficial, muitas vezes não pode ser confrontado com dados que deveriam ser públicos. Nesse sentido, chama a atenção o fato de o Brasil ser um dos poucos países latino-americanos ainda sem uma Lei de Acesso à Informação – segundo tese de doutorado do canadense Greg Michener, ‘mais de 5 bilhões de pessoas em mais de 80 países se beneficiam atualmente de leis de acesso à informação’, incluindo 11 países na América Latina, mas excluindo o Brasil. O tema não brilhou na campanha de nenhum dos postulantes à Presidência neste ano, porém é tempo de mobilizar a sociedade civil para avançar nas conquistas democráticas brasileiras, garantindo publicidade às informações públicas de interesse público.

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Professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie e doutorando em Ciências da Comunicação na ECA/USP