Quando o filósofo Renato Janine Ribeiro admitiu, num artigo de jornal, ter desejado a morte dos assassinos do menino João Helio porque cometeram um crime contra a humanidade, não poderia imaginar que seu dolorido desabafo suscitaria um debate mais profundo do que o quadro de violência e crueldade no país.
O rancor dos politicamente corretos que desabou sobre o filósofo desvenda uma das mais perigosas facetas das elites brasileiras: hipocrisia combinada com prepotência. Agarrados a totens e tabus, incapazes de encarar e escancarar suas angústias e convicções, os bem-pensantes-mal-falantes preferem recorrer ao linchamento moral de alguém que, por sua natureza e ofício, não pode compactuar com o fingimento e a mentira.
É legítimo desejar a morte dos assassinos de João Hélio ou dos facínoras que liquidaram a facadas os ativistas de direitos humanos franceses. Mas não é legítimo transformar em verdugos os que tiveram a coragem moral de confessar este sentimento. Renato Janine não pediu a pena de morte: tocado por aquela morte brutal, revoltou-se contra a impunidade.
Situações-limite
É falso o dilema de que a luta contra a impunidade significa baixar a maioridade penal. Os governadores do Rio, São Paulo e Minas têm mostrado que maior o rigor na aplicação das penas não significa uma alteração nas cláusulas constitucionais ou no artigo 121 do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Existem inúmeras e legítimas opções para tornar mais rigorosa a punição dos crimes cometidos por menores. Mas ao confundir maliciosamente a questão da impunidade com a da maioridade penal tenta-se interromper o fluxo dos questionamentos capazes de dar à sociedade brasileira um mínimo de discernimento sobre tópicos cruciais como crime & castigo e delitos & penas. Transferir tais temas para a esfera dos juristas é uma forma de abdicar da soberania racional e privar a sociedade da sua capacidade de rever-se e reformar-se.
Os fundamentos da nossa economia podem ser excepcionais, mas nossa desumanização chegou a padrões insuportáveis. Sobretudo porque estamos construindo um sistema de comunicação que só funciona em situações-limite: muito barulho ou silêncio absoluto. Muitos decibéis ou nenhum. Já não há lugar para reflexões e monólogos mais profundos. E quando somem as condições para o exercício de monólogos, desaparecem os diálogos.
Discussão acesa
Naquela véspera de Carnaval, o filósofo Renato Janine Ribeiro pretendeu dar um sacolejo na sociedade brasileira, relembrar a brutalidade de Auschwitz para trazê-la para perto do cotidiano brasileiro. Queria dizer o indizível, vencer os preconceitos, expor o seu sofrimento. Pagou o preço de ter dito o que muitos sentiram, mas tiveram medo de abrir a boca.
A Folha de S.Paulo merece o reconhecimento daqueles que pretendem uma sociedade verdadeiramente aberta, inconformada e questionadora. Há três domingos consecutivos o jornal mantém em discussão um tema inconfortável, mas candente.
O filósofo filosofou em público e o jornal cumpriu o seu papel de induzir os leitores a fazer o mesmo.