Terry Jones era um ilustre desconhecido, pastor de uma microscópica congregação pentecostal de 50 fiéis na Flórida, até que há duas semanas, inspirado pelos satanases do radicalismo político ianque, teve a infeliz idéia de anunciar a queima de exemplares do Alcorão para lembrar o nono aniversário do ataque terrorista às Torres Gêmeas de Nova York, perpetrado por ordens do fanático Osama bin Laden.
Provocou um rebuliço mundial porque a ultradireita americana, inspirada na rústica Sarah Palin, pretende incendiar o país para derrotar fragorosamente o presidente Barack Obama nas próximas eleições de novembro.
O desatino do pastor americano acendeu o desvario dos fundamentalistas islâmicos, a ira sagrada globalizou-se através das redes sociais e só não produziu uma catástrofe graças à pronta intervenção de líderes responsáveis, tanto nos EUA como no resto do mundo.
O Alcorão não foi queimado como prometeu o demente Terry Jones, mas a sociedade americana se mostrou estressada e mais fragilizada nestas eleições intermediárias (para renovação parcial do Congresso e governos estaduais) do que em 2008, durante a campanha que levou o primeiro negro à Casa Branca.
Além da justiça
Queimar livros é o primeiro passo para queimar pessoas – sentenciou em 1817 o grande poeta (e também jornalista) alemão Heinrich Heine, quando soube que estudantes nacionalistas queimavam livros de direito franceses. A ameaça de queimar o Alcorão num país que venera a liberdade de expressão não chegou a se materializar, mas é o símbolo de uma irracionalidade teoricamente incompatível com a Era da Informação.
Irracionalidade não muito diferente está apressando a fragmentação da Venezuela à medida que se aproximam as eleições legislativas de 26 de setembro. Hugo Chávez, desta vez, encontra uma oposição esquecida das diferenças ideológicas, fortalecida em torno da idéia de evitar que o país se transforme numa autocracia. O país está dividido, incapaz de estabelecer pontes e diálogos, pronto para uma ruptura.
O nível de polarização no Brasil é menor, mas nossa TPE – Tensão Pré-Eleitoral ultrapassa a de todas as eleições presidenciais desde a redemocratização, inclusive as de 2002, quando se previa uma belicosa disputa pelas chaves do poder em Brasília.
Aconteceu justamente o contrário. As regras foram respeitadas, a compostura mantida, a máquina do governo razoavelmente controlada. Nível de trepidação mínimo: tanto durante a disputa como na transição e na posse. O corpo a corpo mais forte talvez tenha sido o abraço entre os presidentes – tão efusivo que derrubou os óculos daquele que entregava o poder ao sucessor.
Mais importante: a imprensa controlou-se. Talvez porque tenha percebido que além da Justiça Eleitoral havia uma autoridade presidindo o pleito, comprometida com a sua lisura.
Onda de autocríticas
Como não havia candidatos à reeleição, tudo indicava que 2010 seria uma reprodução de 2002: não é o que está acontecendo. O jogo está pesado, o ambiente penoso. O tumor de 2006 não foi lancetado, o processo eleitoral continua contaminado por aquele tipo de ator político que o presidente Lula designou há quatro anos como ‘aloprado’. O pior de tudo: a imprensa desembestou. Onde começa o ciclo, com o ovo ou a galinha?
Não há como negar que o processo político brasileiro se radicalizou e degradou-se. Há um clima de vale-tudo que anula os efeitos objetivos e subjetivos da Lei da Ficha Limpa. Marqueteiros até então imbatíveis estão sendo substituídos por um desbragado e incontrolável populismo. As redes sociais da internet não conseguem sobressair porque este populismo irrefreável, universal e pluripartidário, tornou-as ineficazes. O sotaque caipira é irreproduzível no Twitter ou no Facebook. Propostas, mesmo as mais simplistas, não conseguem competir com o poder deletério dos dossiês, produzidos pelos estúpidos ‘grupos de inteligência’, uma aberração que nos remete aos tempos da ditadura.
Apesar deste clima de confrontação – ou por causa dele – não repercutiram as declarações de Fidel Castro à revista The Atlantic Magazine [reproduzidas na ‘Ilustríssima’ da Folha (12/9, pág. 4-5, para assinantes)].
El Comandante não está preocupado apenas com a iminência de um confronto nuclear no Oriente Médio. Suas reflexões sobre a história recente e a Segunda Guerra Mundial combinadas com as memórias da sua infância, se devidamente digeridas pela esquerda mundial, produzirão uma onda de autocríticas e talvez mesmo haraquiris. Seu puxão de orelhas em Ahmadinejad pode mudar muita coisa no xadrez mundial.
Mensagem decodificada
Embora pouco tenha falado sobre ideologias e embora a sua piada sobre o modelo econômico cubano tenha sido propositalmente truncada por ele mesmo, fica evidente que a América Latina não pode continuar submetida aos precários paradigmas intelectuais de Hugo Chávez ou de seus parceiros.
A inesperada rentrée de Fidel Castro na cena mundial deveria ser saudada com alegria e examinada senão pelos candidatos, ao menos pelos analistas da nossa cena eleitoral. Ao lembrar suas posições extremadas durante a crise dos mísseis soviéticos em Cuba, Fidel não esconde que há meio século encarnava a inevitabilidade do confronto.
Agora, depois de enfrentar a morte, visivelmente de bem com a vida, o cubano aponta para os inexoráveis caminhos da co-habitação. Este surpreendente percurso político-existencial não pode ser descartado nem banalizado. Há nesta reaparição uma mensagem superior que precisaria ser descodificada e valorizada.
Quanto mais cedo, melhor.
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No conturbado ambiente jornalístico-eleitoral ocorreu um episódio positivo, alentador, que merece registro e aplauso. A coluna da ombudsman da Folha de S.Paulo, Suzana Singer, no domingo (12/9), é uma prova de que a grande imprensa, para merecer o adjetivo, não pode se entregar às tentações oferecidas pela arrogância e a onipotência. A crítica à manchete do jornal no domingo anterior, atribuindo à candidata Dilma erros que não cometeu, contém duas enormes doses de coragem moral: da jornalista coerente, firme, e do jornal que acolheu seu contundente texto. Melhor de tudo foi a bem humorada crítica de um internauta reproduzida na coluna: ‘Errar é humano; colocar a culpa na Dilma está no Manual de Redação da Folha‘.