Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Naufrágio à vista

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva chamou os jornalistas que o acompanham em Santo Domingo de ‘um bando de covardes’, por não defenderem o Conselho Federal de Jornalismo (CFJ)

Este Observador aceita a acusação. Considera-se covarde, sim, por não dizer com todas as letras o que pensa de um presidente que não sabe comportar-se como árbitro.

O presidente Lula ora perde a cabeça, ora brinca; o ministro Dirceu esperneia, a Fenaj denuncia. Cada um à sua maneira representa seu papel nesta tragicômica tentativa de impor o renascimento do peleguismo do Estado Novo por meio da criação do CFJ.

A grande verdade é que a verdade triunfou: o governo está sendo flagrado com o garrote (ou a borduna) na mão, a histeria denuncista foi finalmente exibida como jogada de empresas de mídia para favorecer interesses escusos, e a voracidade da CUT-Fenaj foi bombardeada por todos os setores da sociedade. O seu projeto hegemônico está fazendo água e, como sempre acontece, o desespero impôs-se como tática.

Esquecido o tom civilizado, a Fenaj agarra-se ao recurso de desqualificar aqueles que discordaram do projeto. Todos os profissionais que ousaram pronunciar-se contra o CFJ foram considerados indistintamente pelo comando sindical – e pelos acólitos do governo – como joguetes dos ‘barões da mídia’. Inclusive este Observatório da Imprensa, que está na lista negra de diversas publicações brasileiras.

O ministro José Dirceu reclama do patrulhamento, mas patrulhados violentamente estão sendo aqueles que ousaram discordar de uma jogada prepotente que, segundo todos os indícios, tem suas impressões digitais.

No desespero, os conselhistas não fizeram as contas nem anotaram que contra eles está fina flor da nossa imprensa: (pela ordem alfabética) Alcino Leite Neto, Arnaldo Jabor, Clóvis Rossi, Dora Kramer, Eliane Cantanhêde, Elio Gaspari, Fernando Rodrigues, Jaguar, Janio de Freitas, João Ubaldo Ribeiro, Luiz Garcia, Luís Nassif, Merval Pereira, Miriam Leitão, Otavio Frias Filho, Teresa Cruvinel, Vinicius Torres Freire e Zuenir Ventura. A lista não inclui os comentaristas de rádio, televisão e os observadores da imprensa que aqui militam.

Anjo torto

Desde os tempos da resistência à ditadura que não se consegue arregimentar um batalhão tão expressivo de jornalistas em favor de um causa política. A pretensão da CUT-Fenaj é tão estapafúrdia, a jogada tão primitivamente urdida, a exposição de motivos de Ricardo Berzoini tão canhestramente exposta que a unanimidade produziu-se de forma automática e instantânea.

Como disse o presidente do STJ, o ministro Edson Vidigal (ex-jornalista profissional), o anteprojeto é claramente inconstitucional, será barrado de saída na Comissão de Constituição e Justiça. A idéia é liminarmente autoritária, não cabe numa democracia, contraria flagrantemente as cláusulas pétreas da Carta Magna. Mesmo assim não se pode deixar de lado algumas de suas aberrações. No artigo 7, inciso III, no rol das penalidades que poderão ser aplicadas aos jornalistas, está lá, com todas as letras, a palavra censura. E não se pense que a abominável expressão está lá no sentido de repreensão. Antes, quando se tratou das penalidades, mencionou-se a advertência (inciso I).

(…)

Art. 7º As penas aplicáveis por infrações disciplinares são as seguintes:

I – advertência;

II – multa;

III – censura;

IV – suspensão do registro profissional, por até trinta dias; e

V – cassação do registro profissional.

(…)

Apesar do inevitável naufrágio do anteprojeto do CFJ é imperioso manter a disposição de corrigir as disfunções básicas da nossa mídia. O ressuscitamento do affaire Ibsen Pinheiro – nosso caso Dreyfus – mostra as catastróficas dimensões da crise que assola nossos meios de comunicação há uma década. Fica claro que o problema não é econômico. Em plena vigência da ‘bolha’ imperavam os desatinos [leia a rubrica Imprensa em Questão, nesta edição].

Nossa mídia mostra sinais manifestos de fadiga de material. Está visivelmente desacreditada e concentrada (sobretudo nas pequenas e médias áreas urbanas). Não alcança partes importantes do país e quando alcança o faz de forma precária.

A farta distribuição de canais de rádio e TV ao tempo de José Sarney na presidência e Antonio Carlos Magalhães no ministério das Comunicações começa a oferecer os primeiros resultados: o sistema de concessões veio para ficar, dificilmente será modificado porque o Legislativo deixou de ser um poder independente – está dominado pelo lobby dos empresários de comunicação eletrônica.

Não apenas o Legislativo: também o Executivo, por força dos compromissos com sua ‘base de sustentação política’. A melhor prova da capitulação do governo às demandas dos congressistas-empresários de mídia está na portaria 1.597, do Ministério da Justiça, discretamente assinada em 4 de agosto para atender as pressões das redes de TV e abrandar a exigência de uma classificação de conteúdos de acordo com horários e faixas etárias.

Aqui, ao contrário da intervenção que tentou por meio do CFJ, o governo finge-se de anjo. Esquece completamente as exigências constitucionais no tocante à classificação dos espetáculos e resolve entregar às famílias – isto é, a ninguém – a decisão final sobre os conteúdos oferecidos aos filhos menores na telinha da TV.

Uma distorção

Enquanto o deputado petista Orlando Fantazini comanda solitária e heroicamente a campanha contra a baixaria televisiva, a burocracia do Ministério da Justiça – sensível aos interesses das redes de TV populares e evangélicas – abre mão do seu poder de controlar as concessões públicas no campo da comunicação eletrônica.

Esquizofrenia pura: no caso do jornalismo, o cacete; no caso da baixaria televisiva, a complacência e a cumplicidade. O texto que Cláudia Chagas e José Eduardo Romão (pela ordem, secretária nacional de Justiça e diretor do departamento de Classificação de Programas) publicaram no Globo (quinta, 12/8, pág. 7) é um clássico, digamos, de ingenuidade [veja íntegra da matéria na rubrica Entre Aspas, nesta edição].

Uma palavra final aos que preferem raciocinar de forma linear no lugar de atentar para as complexidades do sistema democrático: o fato de existirem Conselhos (federais e regionais) das mais diferentes corporações profissionais não significa que deva existir um Conselho Federal de Jornalismo. Esta compulsão isonômica foi a perdição dos que elaboraram o anteprojeto.

Um Conselho Federal de Jornalistas escaparia da armadilha de intervir no jornalismo, isto é, na imprensa. Por isso, aventou-se como solução, a Ordem dos Jornalistas similar à Ordem dos Advogados.

Não se trata da simples troca de nomes – em vez de um Conselho, uma Ordem. A própria concepção, objetivos e formulação da nova entidade teria que ser drasticamente alterada. O Conselho Federal de Jornalismo com este nome, esta natureza e este objeto é uma distorção. Ele é o passado. Não adianta revivê-lo nem adianta adaptá-lo.