A civilização que inventamos e ninguém ousa alterar celebra o tempo uma única vez no ano. Raramente para trás, retrospectivamente, como convém aos sábios; quase sempre para frente, prospectivamente, como preferem os idólatras.
Festejamos o porvir com espumantes, fogos de artifício, confetes, tudo efêmero. Reveillon vem de réveiller, acordar, despertar do pesadelo. Sonhos ruins, como ensinou Freud, são justamente os que abrem os olhos. Freud morreu há 72 anos, em Marte talvez faça algum sentido.
Engenheiros do tempo, jornalistas e historiadores inventaram um antídoto para a cascata cotidiana de borbulhas – as retrospectivas, que as novas tecnologias com a sua formidável capacidade de fragmentação e pasteurização logo tornarão aleatórias. Pior, desnecessárias.
Teoria de Einstein
No apagar deste 2011, os morticínios diários na Síria ainda conseguem ser lincados à imolação em janeiro passado do vendedor ambulante tunisiano Mohamed Bonazizi, que desencadeou a chamada primavera árabe. Mas porque aconteceram com dias, talvez horas de diferença as fotos dos protestos das feministas egípcias contra os testes de virgindade impostos pelos clérigos islâmicos vitoriosos nas urnas não foram publicadas ao lado das imagens das israelenses protestando contra as violências cometidas pelos ultraortodoxos contra uma menina que consideraram impropriamente vestida.
O mesmo descompasso cronométrico impediu que o cidadão neoiluminista e midiatizado de hoje pudesse comparar visualmente o paroxismo nas praças de Pyongyang, pela morte do monarca stalinista Kim Jong-il, com a comoção engolida nas exéquias de Vaclav Havel, o príncipe que venceu este mesmo stalinismo com a força das palavras. A Europa Central já foi o umbigo do mundo, porém a musculatura global para os tempos vindouros está sendo trabalhada na sociedade de massas asiática. Complicado dizer isso através de fotos. Mais complicado localizar as imagens das gigantescas concentrações militares organizadas por Hitler em 1936 e mostrá-las ao lado das idênticas manifestações na Coréia do Norte.
O fanatismo religioso contemporâneo só encontra semelhança nos massacres da Idade Média, mas como dimensioná-lo? Num ranking da intolerância ou num infográfico das perversões das crenças? Qual o fato e a foto capaz de simbolizar os abusos cometidos em nome da fé? A morte de Osama bin-Laden, a queima de um exemplar do Alcorão por um boçal pastor evangélico nos EUA ou o acelerador de partículas na Suíça tentando provar que Einstein estava errado?
Outro lugar
Se a beleza é fundamental, por que proibir o implante de seios? O câncer é uma invenção da CIA, como acusa Hugo Chávez? A felicidade pode ser faturada em 12 prestações, ou embutida numa lata de cerveja geladinha? O bafômetro representa uma ameaça aos direitos humanos, a palmada em crianças deve ser denunciada por câmeras de TV domésticas? Magistrados estão acima da lei? Se o Brasil é mesmo a sexta potência econômica, por que tantos patrícios se acotovelam em Miami para comprar calcinhas e engenhocas que a nossa estreita banda larga torna dispensáveis? Um Hamlet contemporâneo seria mais perplexo, mais atormentado e mais indignado do que o seu precursor.
Em meio à catástrofe da Segunda Guerra Mundial, o jornalista-militante-ensaísta Arthur Koestler anotou: “O perigo não é acordar certa manhã e achar o mundo fascistizado; isto seria fácil de evitar. O perigo é recolher-se certa noite em um mundo já fascista sem o perceber”.
A reflexão não apareceu numa retrospectiva sobre a crise econômica mundial nem nos prognósticos sobre suas conseqüências políticas para os próximos meses. Está num exemplar muito usado e empoeirado do O Iogue e o Comissário, escrito em 1944, cujo destino seria uma biblioteca pública. Saiu do caixote e voltou à estante.