Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

No bunker

O filme A Queda!, de Bernd Eichinger (produtor e roteirista) e Olivier Hirschbiegel (diretor), sobre os últimos dias de Adolf Hitler, ditador assassino que chegou ao poder na Alemanha pela violência contra os adversários – e pelo voto –, e centuplicou a barbárie nazista manipulando a força terrível de um povo enfileirado, troca o principal pelo acessório.

Cinema sem perspectiva, sem contexto, e isso num veículo como o Observatório da Imprensa, que discute criticamente os meios de comunicação, é preciso repetir cem vezes.

Os jornais brasileiros deram ao filme tratamento rotineiro. À Folha de S.Paulo cabe o mérito de ter reproduzido do Libération, no caderno ‘Mais!’, em dezembro passado, quando o filme ainda nem tinha recebido título definitivo em português, um texto indignado de Wim Wenders.

Humano, sim

O esforço, nem sempre voluntário, da sociedade alemã para acertar contas com um passado de sangue e crueldade é louvável e encorajador, como foi a reunificação do país sem guerra civil. Basta compará-lo com a relutância japonesa em aceitar a responsabilidade pela violência na China durante a guerra. Ou com as barretadas de Putin para Stálin. Ou com a maneira como os Estados Unidos lidaram com seu passado escravista. Para ficar em países ricos.

Mas o partido narrativo ‘psicologizante’ – muito seletivo, por sinal, porque o homem tinha características que foram pudicamente deixadas na sombra – adotado no filme para abordar os dias finais de Hitler exigia talentos cinematográficos e intelectuais mais sólidos. Papel do indivíduo na História, sim, mas sem expurgar do relato a História. Sem ficar ‘neutro’ diante de Hitler. Em face dos nazistas passados, presentes e futuros, e seus epígonos, não há ‘neutralidade’ possível.

Mostrar que Hitler era uma possibilidade contida na trajetória humana não chega a ser um grande feito. A Bíblia disse isso há vinte séculos, em doze versículos do quarto capítulo do Gênesis. Deus aceita a presença entre os homens de sua criatura Caim, que matou o irmão, Abel. Uma parte da humanidade descende de Caim, o fratricida, lê-se versículos adiante.

Para quem acredita em Deus, está tudo dito. Para quem não acredita, também. A lição é aprendida na marra desde que o mundo é habitado por homens. Günter Grass, na última frase de seu Passo de Caranguejo, esse sim um competente acerto de contas com a Segunda Guerra, tira a conclusão: ‘Isso não vai acabar. Nunca isso vai acabar.’

Derrotados, não varridos

Grass, consta, foi um dos que não gostaram do filme. No livro Meu Século, de 1999, ele resumiu, com uma propriedade que o filme não sonha ter, o mal e o sofrimento protagonizados pelo povo alemão. Sem fazer concessões a respeito das ligações dos alemães com o nazismo. (Soa menos categórica sua visão sobre os ideólogos nacionalistas e anti-semitas da Primeira Guerra, personificados no livro na figura de Ernst Jünger.)

Os capítulos de Meu Século dedicados aos anos de 1939 a 1945 se passam em 1962, num encontro de antigos correspondentes de guerra nazistas, alguns dos quais tinham se tornado chefões da mídia na Alemanha do pós-guerra. Eles amaldiçoam a vacilação de Hitler em Dunquerque, episódio que, na sua visão empedernida, causara a derrota da Alemanha, permitindo aos ingleses salvar os homens, ainda que perdendo o armamento.

O principal, ausente

A revista The Economist afirma que o único defeito do filme é ‘de fato não explicar o que tornou [Hitler] tão atraente para os alemães daquele tempo’. Mas que méritos poderiam se contrapor, num filme sobre esse período, a tal defeito historiográfico, logo político?

O público, público alemão, no caso, é poupado de ver Hitler e Joseph Goebbels, os chefões, se matando – a observação de Wim Wenders acompanha sua avaliação muito crítica da ‘neutralidade’ do filme, e é verdadeira.

A busca de verossimilhança é incompatível com a seqüência final, falsa – Traudl Junge não fugiu de bicicleta com o garotinho entusiasta do ditador (na vida real chamado Alfred Czech), revela Sue Summers, no jornal The Observer. E é marota: uma maneira de dizer que o povo alemão, como a última secretária de Hitler, fugiu do pesadelo hitlerista por caminhos ensolarados.

O povo alemão não foi só vítima. Co-produziu o pesadelo hitlerista. Puramente vítimas foram, por exemplo, milhões de crianças de todas as nacionalidades – entre elas mais de um milhão de crianças judias –, mortas, feridas, tornadas órfãs, deslocadas, aterrorizadas.

O relato do historiador alemão Joaquin Fest sobre os últimos dias de Hitler, base do roteiro, não é um ponto de partida inconteste. Não é ‘a’ História, mas uma visão da História. A História, como ocorreu, é por definição irreproduzível. E na construção de uma versão se fazem opções.

Spielberg e Benigni foram os precursores

Em qualquer depoimento de soldados americanos ou brasileiros que participaram da Segunda Guerra Mundial há mais compreensão sobre os horrores do conflito do que nas duas horas e meia do mergulho no bunker. Mas, pudera, a estética de A Queda! tem algo de um Big Brother televisivo.

Há também um tratamento de filme de guerra americano aplicado não a combatentes, mas a assassinos das SS. O correspondente internacional da BBC Paul Reynolds ouviu um importante especialista em história militar, Antony Beevor (Stalingrado, Berlim 1945). Segundo Beevor, o filme é um meio perigoso de retratar a História. Para que a narrativa cinematográfica tenha relevo, explica, é preciso que um personagem seja comparado a outros.

O general SS Wilhelm Monke aparece como nobre defensor do último reduto berlinense. Mas era um legítimo carrasco da guarda pretoriana de Hitler. ‘Soldados das SS sob o comando de Monke foram responsáveis pelo massacre de uma centena de prisioneiros britânicos perto de Dunquerque, em 1940’, diz Beevor.

Quem inaugurou o tratamento dos mais dolorosos e graves assuntos da Segunda Guerra Mundial como peça da indústria cinematográfica foi o americano Steven Spielberg, em A Lista de Schindler. O Holocausto é apresentado em linguagem de grande espetáculo no segundo filme sobre a Segunda Guerra Mundial mais visto em todos os tempos (o primeiro da lista é O Soldado Ryan, do mesmo Spielberg, também glamourizado). Depois veio A Vida é Bela, do italiano Roberto Benigni, fazendo graça com campo de concentração. Por que não os alemães?

No final do filme, a ‘neutra’ secretária Traudl, a verdadeira, em trecho de documentário, diz que levou mais de 40 anos para se dar conta de que teria havido uma alternativa à adesão ao nazismo. A persistente falta de consciência sobre o que representou a adesão ao Führer é um dos problemas que a Alemanha até hoje sofre, e A Queda! não ajuda a resolver.

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P.S. – Ouvido na manhã de segunda-feira (16/5) pelo sistema de som de um supermercado Pão de Açúcar e reproduzido aqui de memória, sem anotação: ‘O filme A Queda! É imperdível. Relata os últimos dias ‘do líder político mais famoso de todos os tempos’ (verbatim), Adolf Hitler, contados por sua secretária particular’.

É a tal história. Não é que não se controle a recepção da obra (embora se esteja obrigado a pensar nela). É que não se controla nem mesmo sua difusão. Tanto mais razão para ter cuidado com o que se produz.