Transformar a linguagem é mudar o mundo – sabemos disso. Desde sempre trabalhamos sob essa perspectiva. Talvez isso tenha começado desde o momento que, ainda peludos e em cavernas, balbuciamos os primeiros sons comunicativos. Todavia, só ao final do século 19, e principalmente no século 20, ganhamos a consciência desse nosso poder. Foi só então que fizemos a guerra semântica vir propositalmente adiante de qualquer outro tipo de ação. Falar de modo ‘politicamente correto’ se tornou, ao final do século 20, algo importante em todo o Ocidente.
Nos Estados Unidos o ‘politicamente correto’ se espraiou de tal modo e se ampliou de tal maneira que logo provocou a reação – às vezes correta – dos mais conservadores. Alguns conservadores mais inteligentes combateram o ‘politicamente correto’ por meio do humor. Ao final, até mesmo a esquerda mais liberal aderiu. Foi o tempo dos engraçados ‘contos de fadas politicamente corretos’, em que o Lobo Mau tinha de ser chamado de ‘Animal de Instintos Excessivamente Unidirecionados’ e o Pinóquio não podia ser adjetivado de mentiroso e, sim, de ‘Sujeito Propenso à Conduta Anti-social’ e assim por diante. Todavia, a reação não venceu. Ela foi batida pelas novas leis que foram incorporando o ‘politicamente correto’. Esse debate está bem minguado nos Estados Unidos. Trinta anos depois, ele esquenta nossa imprensa.
Preocupação e desdém
Por que estamos envolvidos nisso? O nosso problema não é o problema americano. Parece que entre nós o debate ganhou um ar bem menos sofisticado. A nossa baixa escolaridade e a nossa deterioração da escola pública, uma vez juntas, lançou em cargos de liderança, em vários setores, pessoas cujo único aprendizado veio do campo valorativo da luta política. Essas pessoas nunca puderam aprender conceitos, mas ouviram dizer – e acreditaram – que sobre elas havia ‘preconceitos’. Nunca puderam entender que o ‘pré-conceito’ é para quem não chegou ao ‘conceito’, como elas mesmas. Entenderam, erradamente, que o preconceito é uma espécie de ‘má vontade’ ou ‘raiva’ contra elas. Ou seja, pegaram o preconceito por algumas de suas conseqüências, não pelo que ele é. Então, transformaram tudo em preconceito. Tudo que imaginam ser ‘politicamente incorreto’ é assimilado ao que acreditam ser o dito ‘preconceito’ e, assim, com o tacão da censura nas mãos, começam a querer decepar nossa a linguagem e a nossa cultura. Antes vítimas, agora agem rapidamente como algozes. De líderes honrados de movimentos populares com nobres objetivos se transformam em estalinistas toscos cuja idéia básica é a vingança.
Munidos unicamente da falta de conhecimento, essas pessoas perdem a noção do que é, na linguagem, a denotação e a conotação. Para elas, todo e qualquer discurso é unicamente conotativo e, não tendo nunca visto um discurso com conceitos, qualquer coisa que possa servir como instrumento político de ataque é por elas agarrado e utilizado. Para que fique claro o que quero dizer aqui, dou dois exemplos. O primeiro é a fala do cônsul do Haiti; o segundo é a fala de Arnaldo Jabor. Ambas foram gravadas (vídeo 1 e vídeo 2). A primeira, em entrevista, sem que o cônsul soubesse que o microfone ainda estava ligado. A segunda é de um programa rotineiro de Jabor, na TV Globo.
Avaliando a desgraça do Haiti após o terremoto, e contando que aquilo era bom para o seu consulado que estava ficando conhecido, o cônsul Antoine disse claramente, com convicção e rosto de preocupação e desdém: ‘Acho que de, tanto mexer com macumba, não sei o que é aquilo (…). O africano em si tem maldição. Todo lugar que tem africano lá tá f…’
Chefe ‘pela força’
Não há dúvida, neste caso, que há aí pré-conceito. O conceito de africano implica a idéia de alguém, natural da África ou descendente de naturais da África, que adota religiões que o cônsul aglutinou sob a rubrica de ‘macumba’. Essas religiões podem trabalhar com princípios mágicos, por exemplo, o de lançar ‘maldições’ etc. Todavia, o conceito de africano, que é algo de nossa cultura escolar ocidental, não vê tais ‘maldições’ como possíveis. Trata-se de mexer com o que seriam as forças sobrenaturais de modo que elas viessem a intervir nas forças naturais. Nossa cultura escolar laica e iluminista não trabalha com essa hipótese.
Portanto, no conceito de africano que usamos, essas religiões fazem parte da cultura do natural da África, que ele tem direito de cultivar, mas elas não são responsáveis, como agentes causais, de qualquer mal que um africano possa vir a sofrer como, por exemplo, o terremoto. Ora, o cônsul agiu como uma pessoa que ficou aquém da boa escolarização ocidental, laica e iluminista. Ficou aquém da aquisição do conceito de africano e do conceito de religiões afro que utilizamos em nossa sociologia e em nossa antropologia. Ele faltou às aulas de geografia do ensino médio do que seria uma boa escola pública laica – é o mínimo que podemos dizer. Ele, de fato, ficou no pré-conceito.
No caso de Jabor, a situação é inversa. Ele fez um programa em um tom sóbrio e ponderado (diferente dos de suas costumeiras bravatas) descrevendo corretamente a evolução política do Haiti e, quase ao final, lança a seguinte questão: ‘Como democratizar um país miserável, analfabeto e com raízes tribais africanas bárbaras?’
Que o Haiti é miserável e analfabeto é sabido por todos. Não é necessário ser leitor de estatísticas. Jabor disse isso, de modo certo, como quem informa o mais corriqueiro dos comunicados. Mas o problema visto pelos seus opositores não estaria aí, e sim, na expressão ‘raízes tribais africanas bárbaras’. Nesse caso, seus opositores fugiram da escola laica, a divulgadora da cultura iluminista. Eles, e não Jabor, é que não possuem o conceito do que é ‘tribal’ e ‘bárbaro’. Do modo como a explicação da vida política do Haiti se deu, na fala de Jabor, a troca de poder entre os ditadores e chefes políticos se fez, de fato, segundo a troca de poder dos regimes tribais. A idéia de regime civilizado nunca vingou. O respeito a leis conhecidas dos povos organizados em cidades, na tradição da Grécia, Roma e dos Estados modernos, não se verificou. A idéia de que o chefe de Estado nada é senão o chefe ‘pela força’, ao modo da luta do mais forte no campo tribal, sempre esteve na mentalidade do haitiano. Papa Doc, ditador do Haiti, tinha escravos e vivia sob luxo aos moldes dos regimes tribais. Seu filho, Baby Doc, fez o mesmo.
Um caminho árduo
A idéia de tribo está articulada nas nossas ciências política, antropologia e sociologia à idéia de barbárie. Ou melhor, ao próprio conceito de barbárie. O bárbaro é o não grego ou o não romano. Ele é nômade, guerreiro, saqueador. Ele não estabelece leis que não a das decisões contingentes dadas pelo mais forte no momento. O conceito de bárbaro se opõe ao conceito de cidadão ou de súdito. E o Haiti, como explicou Jabor corretamente, nunca foi uma República ou uma monarquia constitucional. Imperou ali não o que conhecemos como o regime de força das ditaduras latino-americanas, mas a força bruta sem qualquer regime. O conceito de bárbaro e tribal se explica exatamente na sua oposição ao conceito de cidadão ou súdito (os civilizados). Jabor utilizou o primeiro corretamente, neste contraponto: como fazer o haitiano cair sob a rubrica do segundo conceito se ele pertence ao primeiro conceito. Assim, no caso de Jabor, há dois conceitos, mas nenhum deles pode receber o nome de pré-conceito.
Jabor quer que um conceito perca elementos. Deseja que os haitianos deixem de serem bárbaros e tribais. Quer que os haitianos vivam sob a égide de outro conceito, de preferência o de cidadãos civilizados. Ele não sabe como fazer isso. Ele acha isso um problema. Ele pode achar isso um problema exatamente porque ele o equaciona como dois conceitos sem que exista uma ponte entre ambos. Em nenhum momento ele utilizou um pré-conceito. Seus opositores, estes sim, ao não entenderem a contraposição de conceitos, tomaram o primeiro como sendo um pré-conceito. Isso porque eles próprios não passaram pela escola (divulgadora de nossa cultura ocidental iluminista) para saber que, no caso, esses dois conceitos são expostos assim, em par.
Aliás, parece que seus opositores nem mesmo conseguem entender o conceito de tribal e bárbaro. Talvez nunca tenham ouvido falar dos bárbaros. Talvez sejam incapazes, até, de entender um filme baseado na história em quadrinhos Os 300 de Esparta. Caso digam para eles que Rodrigo Santoro fez o papel ali de um ‘bárbaro’, um persa, poderão dizer: ‘Ah, tá vendo, o brasileiro é o bárbaro. Que discriminação e preconceito dos americanos conosco…’
Nosso caminho para o trabalho com o politicamente correto é bem mais árduo que aquele percorrido pelos americanos. Um americano lê em média 14 livros ao ano. O dobro de um francês. Um brasileiro lê em média menos de um livro ao ano. Isso diz muito. Aliado fim de nossa escola pública, isso tem trazido para o meio da discussão da imprensa e da política uma conversação confusa entre o que é e o que não é o ‘pré-conceito’. Espero que este texto tenha começado a clarear essa confusão, principalmente para os mais jovens.
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Filósofo, São Paulo, SP