Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Nome e sobrenome do arbítrio

Com atraso, ligo a TV na sessão em que o Supremo Tribunal Federal se manifestará sobre um assunto que nos diz respeito a todos, leitores em geral e jornalistas em particular. É a censura, posta outra vez em questão pela reiterada proibição judicial, já vigente há quatro meses e meio, de que O Estado de S.Paulo dê sequências a reportagens, com dados de investigações policiais, sobre um cidadão como qualquer outro (Fernando Sarney).


Alívio. Chego no instante exato em que um ministro, dos mais convictos de suas verdades, proclama: ‘Não há censura’. Aí está, viva e vigorosa, a nossa maltratada Constituição, por tudo o que diz já no art. 5º e explicita no 220: ‘A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição’. Liberdade plena? Não. Infrações a outros dispositivos constitucionais sujeitam-se a penalidades diversas.


No caso da censura discutida, não cerceou opinião ou julgamento moral, mas informação: notícia de fatos relacionados pela Polícia Federal, integrante do Ministério da Justiça. Mas ‘não há censura’, logo fica claro, no dizer do ministro do STF, significa que a proibição antecipada à publicação daquelas notícias não é censura. E, apesar de emitida por decisão judicial, ‘não é censura judicial’. Expressão que o ministro repele, porque ‘o juiz está limitado pela lei, e o censor, não’. Por isso, ‘é descabido falar em censura judicial. Não há censura. Há aplicação da lei’.


Precedentes perigosos


Façamos ao censor oficial, que parece ser o mencionado pelo ministro, a mínima justiça de que, se o juiz e todos nós estamos limitados, ele está autorizado por ‘constituição’ ditatorial, atos institucionais e, acima da força dessas farsas jurídicas, pela força das armas que a nação põe em mãos de alguns a pretexto de protegê-la, não para dela se apropriarem.


O vernáculo não perdoa, porém. Proibição de divulgar chama-se censura, sem distinção de sua autoria. E, se procedente do Judiciário, a adjetivação cabível é mesmo a de censura judicial. Não há filigranice jurídica que ludibrie a associação de vernáculo e senso comum.


O menos formal e mais substancioso ainda viria, no entanto. E sem surpreender que o fizesse pelas ideias do próprio presidente do STF, Gilmar Mendes. A proteção proporcionada pela lei contra publicações, pensa ele, não pode ser apenas quando já feita a publicação. A seu ver, são necessários dispositivos antecipatórios contra ‘a ameaça’ de violação de direitos.


Ocorre que ‘a ameaça’ relacionada a uma publicação ainda desconhecida é uma presunção – tanto no sentido de suposição como no de pretensão. É, como base de leis, a própria censura prévia baseada no princípio da arbitrariedade: a censura antidemocrática.


Sua defesa no Supremo Tribunal Federal tem muitos precedentes. Mas em outros tempos.


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Eros Grau X Marx


Elio Gaspari


Reproduzido da Folha de S.Paulo, 13/12/2009
Durante a sessão do Supremo Tribunal que preservou a censura imposta pelo afortunado Fernando Sarney ao jornal O Estado de S. Paulo, o ministro Eros Grau tornou-se mais uma vítima do marxismo. Ele amparou-se em Karl Marx para dizer que, havendo lei, não pode haver censura. Nesse caso, o Supremo, amparado na lei, preservava o silêncio do jornal, mas não o censurava. Grau achou essa ideia de Marx no seu primeiro e longo artigo publicado na Gazeta Renana, em maio de 1842, quando ele tinha 24 anos. O contexto em que Grau citou o jovem Karl virou-o pelo avesso. O barbudo alemão fez uma erudita e caótica defesa da lei como instrumento para a eliminação da censura. Na Gazeta, o homem da tesoura chamava-se Dolleschall e Marx queria livrar-se de sua raça. Nas palavras do ‘corifeu da praxis’: ‘A lei de imprensa pune o abuso da liberdade. A lei da censura pune a liberdade como se fosse um abuso’. Nesse caso, havendo lei, não haveria censura. Em abril passado a corte onde Grau apresentou o argumento de Marx mandou para o lixo a Lei de Imprensa da ditadura. Portanto, no caso do silêncio do Estadão, não havia lei, mas o Supremo manteve a censura.