O julgamento da Reclamação (RCL) 9428 – jornal O Estado de S.Paulo versus Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) – pelo Supremo Tribunal Federal (STF), na quinta feira (10/12), merece registro não só pela decisão e suas implicações, mas, sobretudo, por haver esclarecido alguns dos pontos que restavam sombrios em relação ao acórdão do julgamento da ADPF n. 130 que concluiu pela inconstitucionalidade da ‘Lei de Imprensa’ (ver, neste Observatório, ‘A imprensa entre a norma e o fato‘).
Como se sabe, o STF, por seis votos a três, arquivou a RCL 9428, contrária à proibição imposta pelo TJDFT ao Estadão de publicar matérias sobre processo judicial que corre em segredo de justiça contra Fernando Sarney, por não ver na decisão conexão com a aquela tomada pelo STF no julgamento da ADPF 130, conforme alegado pelo jornal (ver aqui).
Vale destacar três pontos do julgamento.
Primeiro, ficou claro já no voto do relator – acompanhado por outros cinco ministros – que não há consenso no STF em relação aos termos do Acórdão escrito pelo ministro Ayres Britto (ver aqui). Foram citados especificamente os votos dos ministros Menezes Direito, Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa, Ellen Gracie, Celso de Mello, Gilmar Mendes e do próprio relator Cézar Peluso, por ocasião do julgamento da ADPF n. 130, para se concluir que:
‘Salvas as ementas, que ao propósito refletem apenas a posição pessoal do eminente Min. Relator, não a opinião majoritária da Corte, o conteúdo semântico geral do acórdão traduz, na inteligência sistemática dos votos, o mero juízo comum de ser a lei de imprensa incompatível com a nova ordem constitucional, não chegando sequer a propor uma interpretação uníssona da cláusula do art. 220, § 1°, da Constituição da República, quanto à extensão da literal ressalva a legislação restritiva, que alguns votos tomaram como reserva legal qualificada. Basta recordar as decisivas manifestações que relevaram a necessidade de ponderação, tendentes a conduzi-los a uma concordância, prática nas particularidades de cada caso onde se lhes revele contraste teórico, entre liberdade de imprensa e direitos da personalidade, como intimidade, honra e imagem, para logo por em evidência o desacordo externado sobre a tese da absoluta prevalência hierárquica da liberdade de expressão frente aos demais direitos fundamentais.’
Hierarquia descabida
Segundo, o ministro Eros Grau defendeu explicitamente que considera ‘descabida’ a utilização da expressão ‘censura judicial’. Disse ele:
‘O juiz está limitado pela lei. O censor não. É descabido falar em censura judicial. Não há censura. Há aplicação da lei. A imprensa precisa de uma lei.’
Da mesma forma, sem que se discutisse o mérito, pelo menos, os ministros Cezar Peluso, Eros Grau e a ministra Ellen Gracie fizeram referência a uma contradição entre a liberdade de imprensa e os poderes jurisdicionais – vale dizer, as decisões da Justiça tomadas dentro dos procedimentos legais.
Terceiro, ao longo do julgamento, o mesmo ministro Eros Grau recorreu a uma improvável referência: Karl Marx. Insistindo, após interpelação do ministro Ayres Brito, que a Suprema Corte dos Estados Unidos também lia e se referia a esse autor, lembrou – sem especificar – passagens de artigos do jovem Marx que foram publicados originalmente em 1842, conhecidos como ‘Debates sobre a Liberdade de Imprensa’ (cf. Karl Marx, <Liberdade de Imprensa, Editora LPM, 1ª. edição, 1980). Nesses artigos, Marx defende uma lei de imprensa contra o Código de Censura de 1841 do governo ditatorial prussiano e afirma, por exemplo, que:
‘A regulamentação da censura não é lei. A lei da imprensa não é regulamentação. Numa lei da imprensa, a liberdade pune. Numa lei da censura, a liberdade é punida. A lei da censura é uma lei suspeita contra a liberdade. A lei da imprensa é um voto de confiança que a imprensa dá a si mesma. A lei da imprensa pune o abuso da liberdade. A lei da censura pune a liberdade como se fosse um abuso (cf. p. 55).’
Ao final, parece claro que, quando houver conflito entre liberdade de imprensa e direitos da personalidade – como intimidade, honra e imagem – o STF deverá decidir caso a caso. Não deverá prevalecer a descabida hierarquia proposta no acórdão da ADPF n. 130 que confere à imprensa ‘uma liberdade maior do que as liberdades individuais de pensamento, de informação e de expressão’.
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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor, entre outros, de Diálogos da Perplexidade – reflexões críticas sobre a mídia, com Bernardo Kucinski (Editora Fundação Perseu Abramo, 2009)