Neste artigo, atenho-me às limitações do jornalismo internacional, baseada no acompanhamento diário da imprensa (particularmente a imprensa escrita) e em minha pesquisa sobre a cobertura brasileira das guerras na ex-Iugoslávia.
Quando Phillip Knightley (1978) afirma, em uma das frases mais citadas quando o assunto é jornalismo de guerra, que a primeira vítima de uma guerra é a verdade, ele está se referindo à liberdade de imprensa em contraposição ao predomínio da censura, da propaganda, da militância ideológica, da perseguição política e da ameaça à vida do jornalista.
Hoje, no entanto, a questão é outra. A questão é: em que consiste a censura em contextos democráticos ou quando não estamos em guerra? Vemos que a noção de liberdade de imprensa está vinculada, hoje, muito mais à ausência de uma censura oficial aos meios de comunicação do que a uma censura interna, baseada no decoro, no ‘bom gosto’ e em uma suposta ‘neutralidade’ em relação ao que se fala ou se escreve – ou seja, a um modo específico de fazer jornalismo.
Percebemos assim que são fatores internos ao jornalismo e ao fazer jornalístico que concorrem para sua limitação. Estes estão relacionados à coleta de informações, à escrita jornalística e a este tipo de autocensura que faz com que, dentre outras coisas, evitemos o sensacionalismo ou a exposição de cadáveres nas páginas do jornal (menos, claro, quando as atrocidades e os cadáveres são dos ‘outros’ – há uma gradação, que varia conforme o que ou de quem se fala, que permite mais ou menos horrores deste tipo nos noticiários). E faz com que busquemos também uma forma mais ‘neutra’ de noticiário, que pode ser observada quando, por exemplo, comparamos os jornais brasileiros com os americanos.
Lá, o The New York Times apoiou em editorial John Kerry para a presidência dos Estados Unidos. No Brasil, não imagino qual seria a reação da opinião pública se algum jornal explicitasse desta forma o seu apoio político – muito embora o Estado de S.Paulo e a revista CartaCapital o tivessem feito na última eleição presidencial. Lá, jornalistas acompanharam ‘seus’ soldados na guerra no Iraque e escreveram matérias em seus jornais; aqui, tentou-se (segundo os jornalistas com os quais conversei) eliminar das matérias os possíveis posicionamentos desses jornalistas.
Similitudes culturais
O jornalismo internacional, todavia, está vinculado à produção de notícias, e esta, aos despachos de meia dúzia de agências internacionais, americanas e européias, que possuem escritórios espalhados pelo mundo (mas não em todo o mundo). Deste modo, junto com as notícias, suas ênfases, pontos de vista, posicionamentos etc., o que não impede, como apontei, que nossos jornalistas tomem uma matéria da France Presse, outra da Associated Press e outra da DPA, por exemplo, e façam um balanço, eliminem arestas ideológicas e posicionamentos exacerbados.
Há portanto um esforço do redator ou editor no Brasil em personalizar o noticiário internacional de seu jornal, o que influi na redação/edição das notícias e fotografias desses despachos e que acrescenta opiniões e posicionamentos críticos, artigos de seus correspondentes internacionais, (mais raramente) de seus enviados especiais e pesquisas realizadas na própria redação do jornal.
No entanto, é inegável que a notícia, o acontecimento, venha predominantemente do jornalismo feito fora do Brasil, por jornalistas não brasileiros. E a cobertura internacional depende deste jornalismo, não sendo mais ou menos intensa conforme o cenário nacional, e sim conforme o noticiário internacional, que chega aqui mapeado em grande medida pelas agências.
O noticiário internacional se constitui, assim, de notícias consideradas importantes e relevantes no âmbito internacional, e este se inscreve dentro de determinadas paisagens jornalísticas, referentes ao acontecimento, relacionadas à pessoa com quem o fato aconteceu e, principalmente, ao lugar onde o fato aconteceu. Vemos que alguns lugares predominam na imprensa; hoje são os Estados Unidos, alguns países da Europa, Oriente Médio (principalmente Iraque e Palestina), China etc. Talvez, em caso de terremoto, a Caxemira possa aparecer nos jornais… e como aqui é Brasil, a América do Sul possui algum espaço na imprensa brasileira – maior, todavia, para seus países relativamente ‘mais importantes’.
A esse afunilamento mundial das informações, soma-se ainda o enfoque como elas são noticiadas, já que transmitidas basicamente por agências européias e americanas de notícias, que guardam muitas semelhanças entre si em termos geopolíticos, profissionais, sócio-econômicos e culturais.
Neutralidade e objetividade
O jornalismo se limita assim a uma escrita determinada, seja por chavões, seja por simplificações excessivas, seja por uma narrativa romanceada dos eventos, seja por ‘manuais de redação’ que padronizam a escrita jornalística.
Muitos autores já atentaram para estes fatos. Pierre Bourdieu (1997), por exemplo, chamou a atenção para as tendências de fechamento no que é publicado pelos jornais; como os jornalistas lêem muito a si próprios, acabam escrevendo mais ou menos da mesma maneira e sobre os mesmos assuntos, além de terem que pensar rápido, dado o ritmo de produção dos jornais, favorecendo a reprodução destes chavões e modos de escrita pré-determinados. Ulf Hannerz (2004), por sua vez, em sua etnografia sobre correspondentes internacionais (quem são, onde moram, como vivem, o que escrevem etc.) utiliza um termo do próprio jornalismo que aponta, igualmente, para esse fechamento, que são as ‘linhas de história’ (ou story lines). Elas seriam uma espécie de mote a respeito do assunto sobre o qual se fala (ou se escreve), que dá coerência à história e organiza e simplifica a narrativa jornalística. Ele cita, neste sentido, o conflito árabe-israelense como a linha de história de uma cobertura em Jerusalém. Outro de seus exemplos é sobre David Remnick, correspondente em Moscou no final da década de 1980.
Remnick contou a Hannerz que, por ocasião do conflito em Nagorno-Karabakh, criara uma tecla de atalho em seu computador que escrevia automaticamente, em quase todos os seus artigos, que Nagorno-Karabakh era um enclave montanhoso em disputa no Azerbaijão e que era habitado basicamente por armênios étnicos (‘‘a disputed mountain enclave within Azerbaijan, inhabited mostly by ethnic Armenians’’, 2004, p. 218). Cito esta frase pois ela, sem querer explicar nada, acabava trazendo em si uma suposta óbvia explicação para o conflito e definição da linha de história dos artigos sobre a região. (Como vimos, não apenas Remnick escrevia esta pequena frase, também muitos jornalistas da época que cobriram este conflito.) A linha de história é, portanto, aquilo que fica de cada acontecimento; os artigos podem ser diversos, mas a linha de história unifica a cobertura e norteia o que se fala do evento.
Assim as reportagens são costuradas por um certo senso comum a respeito do que acontece, com base nas linhas de história e também no próprio modo como trabalham os jornalistas. Um exemplo: quando um correspondente veterano deixa o país onde está estacionado e é substituído por um novo correspondente, normalmente o novo correspondente vai se informar sobre o país a partir dos artigos que o correspondente anterior escrevera e, também, a partir das próprias pessoas do lugar, ou dos fixers, que, por sua vez, compartilham de uma estrutura local interpretativa, já de antemão estabelecida. O conhecimento de senso comum possui assim uma rotatividade: da população para os correspondentes, para as suas matérias, para o novo correspondente, que então se manterá informado pelas matérias do correspondente anterior e pela população local.
Pensando agora neste jornalista, se Hannerz o tem como foco de análise, para nós este foco é difuso, pois grande parte do noticiário internacional brasileiro caracteriza-se pelo anonimato deste sujeito. Primeiramente, em se tratando de artigos não assinados, as agências internacionais enviam notícias e, desde então, desconhecemos seus jornalistas. A partir desses despachos e dos despachos dos jornais internacionais, a matéria é escrita aqui por um outro jornalista. Quando lemos a matéria no jornal, a única informação que temos a respeito de sua autoria é a citação de meia dúzia de agências – ou, simplesmente, ‘com agências internacionais’. E o que temos neste momento é uma múltipla autoria e um grande distanciamento do contexto de elaboração do artigo.
Em segundo lugar, em se tratando de artigos assinados, estes (sejam feitos por correspondentes brasileiros ou enviados especiais, por outros correspondentes ou agências estrangeiros) não diferem muito uns dos outros em termos de tipo de cobertura. Ambos cobrem mais ou menos os mesmos assuntos, temas e lugares são recorrentes e a forma de narrá-los, parecida. A diferença, claro, é que a cada dia temos menos jornalistas brasileiros fazendo coberturas internacionais in loco.
Por último, no que tange ao acompanhamento de determinado assunto, caso de fato haja algum acompanhamento por parte dos jornais, se não é um enviado especial brasileiro que está lá fazendo a cobertura, dificilmente podemos acompanhar dia-a-dia a cobertura de algum correspondente pelos nossos jornais, que publicam um material variado, de diversos autores, e descontínuo.
Conclui-se então que muito da maneira como funciona a imprensa concorre para a anulação do jornalista como autor de seu noticiário. O que, por sua vez, não é de todo ruim para uma imprensa que prega como valor a neutralidade e a objetividade (em contraposição à subjetividade) diante dos fatos – por mais que todos saibamos que ambas sejam impossíveis de ser plenamente atingidas.
Índice informativo
Frente a tudo isso, desde o fechamento do que é dito ou como é dito, até a quase impossibilidade de o jornalista aparecer como autor, somados à fragmentação e à fugacidade do noticiário, pergunta-se: qual o sentido do jornalismo internacional brasileiro? Se os jornais brasileiros estão em crise, para que investir em noticiário internacional?
A figura do jornalista e do correspondente internacional, enquanto indivíduo, dono de uma escrita e de uma experiência de vida, convertido em testemunha de um acontecimento, vai constituir o diferencial do jornal e, aparentemente, da cobertura – e é isto que faz com que a cobertura deste ‘brasileiro’ seja importante. É ele quem faz a tradução e relata para nós o que lá acontece, dando coesão ao noticiário e de fato nos aproximando do contexto de elaboração da notícia.
Este diferencial do jornal, porém, além de raro, acaba implicando outros problemas. Muitas vezes, na tentativa de nos aproximar do que acontece lá, alguns assuntos são recorrentes: proliferam reportagens sobre brasileiros nos locais notificados, torna-se explícito essa espécie de orgulho que o jornalista brasileiro tem de, ao se identificar como brasileiro, ser bem recebido, e, ainda, o jornalista aparece como protagonista de uma reportagem em vez de ‘testemunha de um acontecimento’. Tudo isso visa nos aproximar da realidade do outro – mas dela, entretanto, nos distancia.
Um exemplo deste mecanismo ambíguo, e talvez não intencional, pôde ser claramente observado na cobertura do tsunami que atingiu a Ásia em dezembro de 2004. Por maior que tenha sido a cobertura, a comoção mundial e a ajuda humanitária, o espaço ocupado na imprensa brasileira (e não só) pelos ‘turistas ocidentais’, ou pelos dois brasileiros mortos na catástrofe, ultrapassou enormemente o lugar nela ocupado pelos ‘nativos’. Desta maneira, ao falarmos de nós mesmos, deixamos de falar dos outros o tanto quanto deveríamos, ou de abordar assuntos mais pertinentes à situação. E assim, com um simples ato que pretende a aproximação, cria-se o distanciamento.
Não acredito, contudo, que esses fatores devam contribuir para um menor investimento nesse tipo de jornalismo, ou em um niilismo radical diante de possibilidades de se fazer jornalismo internacional no Brasil. Pelo contrário. O jornalismo continua desempenhando um papel fundamental na difusão de informações, na aproximação das diversas partes do mundo, de seus problemas, realidades, diferenças e, inclusive, na vontade de que esta difusão seja cada vez mais intensa e melhor – estão aí as organizações de apoio ao jornalismo (organizações de importância fundamental na luta pela liberdade de imprensa no mundo) e também os observatórios de imprensa nacionais e não nacionais. A crítica ao jornalismo deve ser e é realizada, portanto, com este mesmo intuito. É notável a responsabilidade do jornalismo – logo, a necessidade de serem observadas essas e outras ‘limitações’, sejam elas compulsórias ou não.
Utilizada como fonte didática e diária para atualizações em relação ao que acontece no mundo, antes de ser tomada como fonte de conhecimento a imprensa deveria ser utilizada como índice informativo, já que mesmo nos relatos mais banais o posicionamentos estão presentes – e por mais que se tente a ‘neutralidade’, esta é sempre informada por visões e compreensões de mundo, por regras do próprio jornalismo, e por sensos comuns sobre o que e como mostrar.
BIBLIOGRAFIA
BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão (Seguido de A influência do jornalismo e Os jogos olímpicos). Tradução Maria Lúcia Machado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
HANNERZ, Ulf. Foreign news: exploring the world of foreign correspondents. Chicago: The University of Chicago Press, 2004.
KNIGHTLEY, Phillip. A primeira vítima: o correspondente de guerra como herói, propagandista e fabricante de mitos, da Criméia ao Vietnã. Tradução Sônia Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978.
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Doutoranda em Antropologia Social (Unicamp, Campinas/SP)