Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Notícias de ganância e corrupção

A Folha de S. Paulo é o primeiro entre os grandes jornais de circulação nacional a tirar da manchete a tragédia que produziu mais de duas centenas de mortes em Santa Maria (RS). Embora mantenha o assunto como tema principal de seu caderno “Cotidiano”, preferiu dar mais destaque na primeira página ao aumento de preço da gasolina nas refinarias.

São insondáveis as razões pelas quais um acontecimento permanece no topo da agenda construída pela imprensa, e, na falta de explicações oficiais, vale qualquer especulação. Quem já fez muitas primeiras páginas sabe, porém, que tal decisão nunca é aleatória, embora muitas vezes seja difícil entender certas escolhas dos editores.

De qualquer modo, teoricamente um jornal está sempre em busca da atenção do público, e não há muitos argumentos para afirmar que o mais do que anunciado reajuste de preços – e que pode até não vir a afetar imediatamente o bolso do cidadão comum – possa ser mais interessante como notícia do que a revelação de detalhes sobre a causa de tantas mortes na boate de Santa Maria.

Na prática, é como se a Folha estivesse dizendo: lamentamos tantas mortes, mas a vida continua e – olha, vai ficar tudo mais caro. Estaria, assim, seguindo à risca o projeto de modernização do jornal, que há duas décadas insiste em perseguir uma visão radicalmente objetiva da realidade, motivo pelo qual seus editores apreciam tanto as estatísticas e os infográficos.

Acontece que a realidade brasileira está mais presente e de uma maneira mais instigante na tragédia que mortifica o país do que nos eventuais centavos a mais que poderão cair na conta dos motoristas. Pelo menos é isso que nos apresentam as edições dos jornais de quarta-feira (30/1): todo o noticiário aponta para a possibilidade de que o incêndio tenha resultado de um misto de ganância, incompetência e corrupção.

A verdade certamente está muito próxima do cartaz levantado por uma manifestante, mãe de uma das vítimas, durante a passeata de 35 mil pessoas ocorrida na terça-feira (29) em Santa Maria: “Minha filha morreu por ganância de gente corrupta”, diz a desesperada mensagem, estampada na primeira página do Globo e do Estado de S.Paulo.

Sociedades criminosas

O tom geral das reportagens induz à interpretação de que um conjunto de más ações e péssimas omissões produziu a tragédia. O longo título na seção especial criada pela Folha não podia ser mais explícito: “Polícia acusa banda e boate por tragédia e aponta falhas dos bombeiros e da prefeitura”. O Globo vai no mesmo sentido: “Omissão de prefeitura e bombeiros é investigada”, diz a manchete. E o Estadão, também no título mais importante da primeira página, afirma que “MP vai investigar bombeiros e fiscais após tragédia no RS”.

O noticiário informa que a boate Kiss estava sem alvará sanitário e sem licença para equipamentos contra incêndio; há suspeitas de que os extintores eram fraudados e que, após a última vistoria da prefeitura, um anexo havia sido construído, sem saída externa.

Além disso, conforme destaca o Globo na primeira página, os dois proprietários da casa noturna já foram condenados por danos morais, acusados de manter uma cliente em cárcere privado. Um deles também responde a processo por lesões corporais graves.

Juntando esses indícios, mais a afoiteza com que os empresários foram defendidos pelo prefeito da cidade e o comandante do Corpo de Bombeiros, os jornalistas finalmente começaram a desconfiar de que a tragédia não fora causada por uma conjunção dos astros. Tudo aponta para uma associação entre ganância e corrupção, como diz o cartaz da mãe desesperada, mas ninguém pode assegurar que os jornais terão fôlego e interesse para mergulhar até onde é preciso.

Juntando-se as reportagens publicadas na quarta-feira pelos três principais diários de circulação nacional, tem-se um retrato escabroso das casas de entretenimento no país. Acrescentando-se os comentários agregados por leitores ao noticiário online, tem-se um perfil de empreendedores semelhante ao dos mafiosos que dominam o negócio dos jogos clandestinos e a prostituição.

Não há como ignorar a conexão entre a tragédia de Santa Maria e o caso do responsável pelo licenciamento de edifícios em São Paulo, acusado de enriquecer à base de propinas. Os ingredientes apontam para a necessidade de muita investigação, mas a imprensa não tem demonstrado apetite ou capacidade para ir adiante.

O que teremos, então, vai depender da transparência do poder público. E o círculo se fecha.

Leia também

A História interrompida – L.M.C.

O horror e o limite da linguagem – L.M.C.

A emoção útil e a charge infeliz – Sylvia Debossan Moretzsohn

Efeitos especiais de um beijo macabro – Alberto Dines

A diferença entre o remédio e o veneno – Carlos Tourinho

Jornalismo ou a arte do grotesco? – Raphael Tsavkko Garcia

Como usar o drama para fazer marketing – Pedro Aguiar